Foto: Márcia Pimparel Vara

“É preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não sairmos de nós”. Esta é uma das frases do livro Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, e parece que foi esta a máxima seguida pela Câmara Municipal de Valongo que está apostada em acabar com os obstáculos no município para quem tem mobilidade reduzida ou é invisual. Para isso, e inserida nas comemorações do Dia Nacional das Acessibilidades, preparou uma ação designada ‘Passeio de Acessibilidades’, para escutar a comunidade e perceber as dificuldades de quem, todos os dias, circula nas zonas urbanas, porque só planeando e envolvendo todas as pessoas é que se consegue construir um espaço para todos.

O vereador Paulo Esteves Ferreira acompanhou o périplo, justificando esta ação com a necessidade de “sensibilizar os profissionais e responsáveis envolvidos na conceção e planeamento urbano para a necessidade de eliminar as barreiras existentes”, só assim se pode garantir “um município mais inclusivo e acessível”.

Para além dos técnicos, projetistas e arquitetos estiveram presentes várias pessoas com mobilidade reduzida ou condicionada e todos partilharam as suas experiências, contribuindo com sugestões de forma a ser possível “fazer mudanças no nosso município”, frisou o vereador ao VERDADEIRO OLHAR

A comitiva saiu do Fórum Cultural de Ermesinde e dirigiu-se, a pé, para Gandra, mais concretamente para a Unidade de Saúde Familiar local. E o percurso não foi fácil. Desde logo, a sinalética dentro da Estação Ferroviária de Ermesinde não está ajustada e um dos percursos em piso pitonado (com relevo), feito para quem é invisual, “esbarra”, ironicamente, numa parede de vidro.

Dali até ao destino, não faltaram ainda carros aparcados em cima dos passeios e a obstruírem o acesso às passadeiras, postes ou sinalização vertical no meio de percursos pedonais, corrimões desnivelados, floreiras de cimento e rampas demasiado ingremes, onde as cadeiras de rodas podem tombar. A autarquia de Valongo anunciou guerra a todos estes obstáculos, mas não só. Também pretende mudar hábitos e mentalidades de quem, diariamente, anda pela cidade de carro e estaciona de forma aleatória, não se preocupando com quem tem que se deslocar em cadeira de rodas ou é invisual.

Voltando ao percurso, a comitiva passou por sinalização vertical plantada no meio dos passeios, caixas da EDP salientes e floreiras em cimento espalhadas um pouco por todo o lado, que são bonitas, do ponto de vista estético, mas tornam-se verdadeiras “armas” para quem não vê e circula com bengala, sublinhou José António, invisual e telefonista na Câmara Municipal de Valongo.

“É uma selvajaria e há cada vez mais dificuldade em circular pela cidade”.

Mas o mais grave, e que o VERDADEIRO OLHAR constatou, é mesmo a falta de civismo da população que estaciona os automóveis em cima dos passeios, transformando pequenos percursos em verdadeiras gincanas. Uma “selvajaria”, disse um dos invisuais presentes, que vive em Ermesinde, mas que tem “muitas dificuldades em circular pela cidade”.

O mesmo refere Susana Santos que tem mais de 50 anos, mas ficou cega há dois. “Eu conhecia todas as ruas e sabia andar aqui, mas, agora, é um martírio sair de casa. Um espaço que era inclusivo deixou de ser”, lamentou, ao mesmo tempo que disse sentir “uma grande revolta”, sobretudo pelo comportamento abusivo das pessoas. E a verdade é que neste percurso esbarramos, por exemplo, com um automóvel estacionado a bloquear o passeio e, apesar da chamada de atenção, a condutora acabou por sair do carro e até gritar alguns impropérios.

“Os comportamentos de alguns podem estragar a vida de outros que já têm a vida limitada e mais dificultada”.

E a polícia, onde anda, perguntou alguém. Paulo Esteves Ferreira reconhece a ausência de agentes naquela zona, mas sabe que “não é possível estarem em todo o lado”. Por isso, a chegada da Polícia Municipal, que se prevê que esteja no terreno ainda este ano, com 21 agentes, vá contribuir para que Valongo seja um concelho mais inclusivo. “Vai acontecer e de uma forma mais musculada, obrigando a comportamentos mais cívicos e mais responsáveis”, vaticinou Paulo Esteves Ferreira que lamenta que as pessoas estejam “cada vez mais interessadas no bem próprio” em detrimento do bem comum. O vereador reconhece, no entanto, que em Gandra “não existe espaço público disponível para tanto carro”. E esta ação na rua veio demonstrar isso mesmo, aliado a muito “comodismo”. “Não podemos esquecer que “os comportamento de alguns podem estragar a vida de outros que já têm a vida limitada e mais dificultada”.

Eduardo Rito, Escola de Cães-Guia para Cegos

Apesar de estas ações serem importantes, Paulo Esteves Ferreira lembra ainda que “esta cultura” de andar mais a pé e de transportes públicos “tem que começar nas escolas. Porque não podemos andar a pregar e não executar, se queremos uma cidade mais inclusiva há que que formar as gerações mais novas”.

Se andássemos todos em cadeira de rodas por um dia “íamos ver tudo de maneira diferente, porque só passando pelas situações é que damos valor”. Além disso, quem idealiza ou projeta as cidades “acha que sabe fazer tudo, porque estudaram, mas, no final há ausência de bom senso”, disse ainda o vereador, elencando que o município vai utilizar estas pessoas com limitações para quando forem feitas “obras no espaço público se perceber se foram calculadas todas as necessidade que, muitas vezes, são tão pequenas que nem implicam gastos”.

Manuela Oliveira, 29 anos, é arquiteta e embaixadora da Associação Salvador, um organismo que, nos últimos 20 anos, apoiou mais de 6.000 pessoas na promoção da inclusão de pessoas com deficiência motora. Ao VERDADEIRO OLHAR explicou que Valongo tem “várias vertentes a trabalhar”, congratulando-se, no entanto, com “o esforço da autarquia” nesse sentido. Apesar de ter visto “um estacionamento desordenado e uma via pública muito ocupada”, é certo que Valongo está apostada em trabalhar o “ordenamento e a organização” urbana, o que é de sublinhar. Manuela Oliveira, que participa em muitas sessões do género, não só em Câmaras Municipais, mas em empresas e escolas, acredita que todos estes organismos e a própria sociedade vão estando cada vez mais sensíveis para esta temática, por isso, “estamos no caminho certo”, concluiu.

Eduardo Rito é invisual, mora na Senhora da Hora, Matosinhos, e faz parte da Escola de Cães-Guia para Cegos e esteve em Valongo, a convite da autarquia, para participar nesta ação. Ao VERDADEIRO OLHAR explicou que esta preocupação de quem lidera as autarquias começa a ter “cada vez mais em conta a questão das acessibilidades”, mas “mais do que cumprir linhas orientadoras, urge sensibilizar as pessoas, perceber que pequenos aspetos se podem mudar e que contribuam para o bem estar da sociedade em geral e das pessoa com deficiência”.

“Envergonhou-me eventualmente e alertou-me principalmente, porque há espaços que intervencionamos, com as regras da lei das acessibilidades, e, mesmo assim, existem barreiras que ninguém percebeu”.

No final desta ação, Paulo Esteves Ferreira fez o balanço deste percurso: “envergonhou-me eventualmente e alertou-me principalmente, porque há espaços que intervencionamos, com as regras da lei das acessibilidades, e, mesmo assim, existem barreiras que ninguém percebeu”.

Aliás, a autarquia de Valongo tem prevista uma intervenção no espaço urbano denominada “Projeto Nova Gandra”, subordinada ao tema “viagens”, onde estão previstos parques infantis e zonas onde os mais velhos possam aproveitar o espaço público a par com os mais novos, aparcamento e reorganização do que já existe, alargamento de passeios, mais iluminação e até a colocação de vasos pintados que serão espalhados pelos bairros. Sandra Lameiras, administradora da OPT, Optimização e Planeamento de Transportes, uma spin-off da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto que se dedica ao sector da mobilidade e transportes, abordou as linhas mestras do projeto que pretende, acima de tudo, criar um espaço mais inclusivo. A ideia, que foi apresentada no início desta sessão, terá agora que ser adaptada às sugestões de quem, todos os dias, circula por aquele espaço e tem a mobilidade reduzida ou condicionada.

E depois desta incurssão ficou a certeza que quaisquer que sejam as capacidades ou dificuldades, todas as pessoas têm o direito de viver de um modo independente nas cidades. Somos educados para a autonomia, só que na deficiência ela existe em equilibrismo e é preciso criar novas definições de independência que, neste caso, só serão possíveis com a intervenção do município, porque as comunidades constróem-se.

E a deficiência ou a limitação não podem constituir entraves à vida. Porque onde vão uns têm que ir todos. E esta é a aposta da Câmara Municipal que quer transformar Valongo num município sem barreiras e sem limites. Mas, para isso, há que pôr a população local a sentir na pele estas limitações. E foi o que a autarquia fez com esta ação. E a verdade é que, antes desta pequena viagem, podemos concluir que éramos todos cegos, porque muitos desconheciam que os invisuais ou quem se move em cadeira de rodas ou tem outro tipo de limitações quer apenas seguir o seu caminho.