O dia começa cedo na nova Unidade de Hospitalização Domiciliária do Centro Hospitalar Universitário São João, sediada no Hospital Nossa Senhora da Conceição, em Valongo.
É por volta das 8h00 que a medicação, análises e exames destinados aos doentes que vão ser visitados começam a ser preparados. Cerca de uma hora depois, reúne-se a equipa para antecipar o dia e falar sobre a possível entrada de uma nova doente. Na sala, está o enfermeiro-chefe e mais dois enfermeiros, uma médica, uma assistente social e o coordenador da unidade, Carlos Dias.
Ainda estão a ser dados os primeiros passos neste serviço. O funcionamento desta unidade iniciou-se a 2 de Maio, mas, na prática, as visitas aos utentes só começaram a ser efectuadas há uma semana. Até segunda-feira, Manuel Ferreira e Isilda Dias eram os únicos aprovados. “Preferimos, nesta fase inicial, começar com menos doentes, de forma a garantir uma melhor assistência. Estamos em fase de limar arestas e de aprendizagens”, explica a médica Helena Moreira.
Esta sexta-feira, foram incluídos mais dois utentes, que já recebem visitas, ambos de Alfena.
De mochila vermelha às costas e documentação na mão, a médica e o enfermeiro Filipe Cunha encaminham-se para o carro destinado apenas a este serviço. Ao todo, dispõem de dois veículos.
A prevenção acompanha-os sempre durante todo o processo. Levam seringas, agulhas, soro fisiológico, água destilada, uma mala com material para cada sistema humano, luvas, desinfectante das mãos e da pele, aventais, medicação mais urgente, mala com material de pensos, mala com material de colheitas (recolha de sangue), terapêutica para deixar em casa dos utentes, material para preparação e administração do antibiótico para agilizar o tempo e uma mala de emergência.
Durante a viagem, o GPS torna-se o melhor aliado e presta-se atenção aos caminhos que ainda não se sabem de cor. O primeiro doente a receber a visita é Manuel Ferreira, de 71 anos e da Maia, que sofre de uma inflamação na próstata e tinha estado internado durante cerca de dez dias depois da Páscoa.
Estas idas ao domicílio são feitas nas manhãs de segunda a sexta-feira por um médico e um enfermeiro e, da parte da tarde, apenas por um enfermeiro. Ao fim-de-semana, os doentes recebem a visita de um enfermeiro de manhã e de tarde, mas os médicos estão “com o telefone disponível para qualquer ocorrência”.
Sorrisos e carinho da família fazem parte do tratamento de Manuel
No fim-de-semana passado, Manuel precisou de ser visto num serviço de urgência e houve uma articulação com a equipa do hospital, a equipa de hospitalização domiciliária e também com os cuidadores para que fosse observado e realizasse os exames complementares considerados necessários. “Esteve lá em vigilância, realizou os exames e voltou para o domicílio no domingo, ao final da tarde, e nessa altura, também teve uma visita do nosso enfermeiro para verificar se a situação estava estabilizada e reforçar a medicação junto da família”, explica Helena Moreira, garantindo que agora o objectivo é tranquilizar os familiares. “Nós estamos sempre atentos a tudo o que se está a passar”, sublinha.
Ao entrar no quarto, Sandra Ferreira, a filha mais nova, está ao lado do pai, Manuel, e dá-lhe um copo com um medicamento que parece sumo, mas que o leva a fazer caretas de desgosto. Vive com a mulher, Zaida Ferreira, o filho mais velho e uma cadela, a Nina, que não sai da beira do dono.
Há uns anos teve um AVC e, desde então, tem os membros do lado direito paralisados e necessita de ajuda para quase tudo.
“Somos quatro irmãos e costumamos vir todos cá sempre. Eu mais frequentemente porque vivo aqui perto e passo para ver o meu pai e se a minha mãe precisa de alguma coisa, e agora nesta situação é que passo mesmo todos os dias e tento ajudar naquilo que puder. Todos ajudamos a minha mãe a lidar com o meu pai”, revela Sandra.
A possibilidade de vir a fazer o tratamento em casa surgiu através de uma proposta da médica de Manuel ao filho mais velho. “Torna-se tudo muito mais fácil para nós para não irmos sempre para o hospital, é um desgaste. Aqui é muito melhor, não falta nada. Assim, ele está aqui connosco, a gente dá-lhe a comidinha, é diferente”, refere com um sorriso de satisfação.
“De hoje a amanhã que eu venha a precisar, que os meus filhos façam aquilo que eu faço ao meu pai”, acrescenta.
Durante cerca de uma hora, a equipa coloca os medicamentos de Manuel em caixinhas, recolhe sangue para análises, dá soro e mede as tensões e os níveis de saturação. Estes níveis também são medidos diariamente pelos cuidadores dos doentes que ficam com um aparelho disponibilizado pela Unidade para poderem ver as tensões, o valor do oxigénio e a frequência cardíaca, assim como um termómetro e um medidor de glicemia para os doentes diabéticos.
Depois, a originalidade faz as honras da casa no que toca a encontrar sítio onde pendurar o saco do soro. Em casa deste doente, já encontraram forma de o colocar por baixo do candeeiro.
Entretanto, chega a esposa e outra das filhas. Zaida Ferreira é casada com Manuel há 42 anos, entra e vai logo dar mimos ao marido. “É o meu menino, o meu queridinho”, diz. “É graxa, tu queres é ficar bem na fotografia”, riposta Manuel, rindo-se, mas admite: “42 anos é uma vida! Esta é a sério”. E dão um beijinho na boca para recordar o momento mais tarde.
“Só não gosto é de ele teimar em não beber água. Se ele bebesse, era um espectáculo! Ias a Fátima a pé”, exclama Zaida, referindo que a equipa que vai todos os dias lá a casa “é um espectáculo”. “Até estás mais estragado! Não há um que venha cá dar um raspanetezinho”, brinca. Manuel diz que estar a ser tratado em casa “é melhor do que tudo”.
Por aqui, está a visita feita e a manhã já vai a meio. Zaida fica à janela a dizer adeus à equipa. “É espectacular ver aquele senhor a sorrir”, admira Filipe.
Ao receber todos os cuidados no conforto da sua casa, Isilda sente-se outra vez bebé
Mais alguns quilómetros rodados e chega-se a casa de Isilda Dias, em Pedrouços. Tem 66 anos e sofre de insuficiência cardíaca, para além de ter uma anemia e precisar que sejam feitos curativos em feridas que tem nas pernas devido a uma patologia venosa.
Está sentada em frente à “enorme” televisão que tem no quarto, com alguma tosse e as pernas inchadas. Em cima de cada cómodo não faltam “santinhos”, mas a dificuldade em saber onde pendurar o saco com o ferro a ser administrado mantém-se. Acaba por ir parar também por baixo do candeeiro.
Ali vivem o marido, a filha, o genro, os quatro netos e um cão, que já não ladra à chegada da equipa. “Agora já nos conhece”, brinca a médica.
Há tempo também para distribuir os vários comprimidos pelas caixinhas adequadas e fazer o curativo. Helena dá uso às novas tecnologias e tira fotografias do estado das feridas para partilhar, via aplicação Whatsapp, com os restantes colegas da equipa para estarem a par do estado em que estão.
“Passei agora a bebé, como a minha neta de quatro anos”, brinca Isilda. “Estou a melhorar muito, também é uma equipa que é uma categoria. É preferível estar aqui em casa do que no hospital. É um mau estar”, explica a utente. ”Espero que tenham muitos doentes a poderem usufruir, mas que também não sejam chatos. No hospital, há doentes que até insultam os enfermeiros”, continua. “Tem de ser os doentes e a família, que tem de ser como a sua que nos ajude”, acrescenta Helena Moreira.
Para que um doente seja admitido nesta unidade é necessário que tenha “uma doença aguda, com diagnóstico bem definido” e “têm de estar estabilizados sob o ponto de vista hemodinâmico, respiratório, cardíaco e renal”, como explica Carlos Dias. Em causa, estão pneumonias, infecções respiratórias, urinárias, da pele, doentes com insuficiência cardíaca a fazer determinadas terapêuticas e, “no futuro, o objectivo é avançar para outras patologias que podem perfeitamente ser internadas no domicílio e tratadas lá”.
Além disso, a médica Helena explica também que tem de ser assegurada “a existência de um cuidador 24 horas no domicílio, para que consiga responder às solicitações do doente, avaliar os seus sinais vitais, a febre, contabilizar a urina, ver as dejecções e também acudir em qualquer situação de emergência, sendo que o doente não pode estar sozinho em casa”. Tem de ser um “cuidador capaz” e “é obrigatório haver colaboração das famílias” e é aqui que o papel da assistente social é fundamental.
“Foi uma proposta que o hospital fez e é melhor tê-la em casa do que estar no hospital, para ela e para nós”, afirma a filha Cátia Sousa, explicando que, como a mãe não pode andar, é “muito melhor fazer o curativo em casa”. “É confortável e é bom porque, ao menos, está à nossa beira sempre, a todos os momentos”, sublinha o marido, Joaquim Machado.
Aquando da visita, estava prevista a alta de Isilda, mas a situação não permaneceu estável, por isso, a doente mantém-se a usufruir do serviço, estando agora com o estado de saúde “controlado”, como revela o coordenador da Unidade.
“Trabalhar com os doentes no seu ambiente natural é o melhor que pode haver”
Já são horas de almoçar e é esse o tema de conversa no regresso ao Hospital de Valongo. Tanto Helena Moreira como Filipe Cunha trabalhavam até então no Hospital de São João, ela no Serviço de Medicina Interna e ele na Neurocirurgia.
“É um projecto desafiante, motivador, começar uma coisa diferente, acho que também tem de se formar uma equipa que esteja motivada e que tenham competências, quer técnicas, quer humanas, para lidar com as patologias envolvidas e também saber lidar com aspectos familiares”, refere Helena. “O que me gratifica é notar uma melhoria progressiva no estado de saúde do doente, perceber que as famílias sentem segurança na equipa e que o próprio doente também esteja no conforto do lar e junto de quem mais gosta”, acrescenta.
Para Filipe, “é gratificante poder cuidar de pessoas na sua casa, que é o melhor para eles, havendo condições para isso e vê-los a melhorar de dia para dia”. “Trabalhar na comunidade, trabalhar em casa das pessoas, no seu ambiente natural é o melhor que pode haver”, conclui.
“Esta vai ser a maior unidade do país”
Neste momento, “há 13 Unidades de Hospitalização Domiciliária em funcionamento em todo o país”, segundo informa Carlos Dias. “É vontade do Ministério que os hospitais implementem este tipo de serviço e, portanto, criar aqui no pólo de Valongo faz sentido porque vamos servir o concelho de Valongo e da Maia que são dois concelhos de referência para o Hospital de São João. Por outro lado, temos mais espaço, é mais fácil criar aqui a equipa e partir daqui do que do próprio hospital, que já está muito saturado”, explica.
Actualmente, esta Unidade é composta por quatro doentes, quatro enfermeiros, dois médicos, uma assistente social e também uma farmacêutica alocada ao serviço. Até ao fim de Junho, “o objectivo é chegar aos cinco doentes, em simultâneo”. Até ao final do ano, o coordenador da Unidade espera alcançar os 15 doentes, sendo para isso necessário “criar depois uma segunda equipa”, o que vai envolver mais contratações.
Daqui a um ano, “se tudo correr conforme está a correr, esta vai ser a maior unidade do país e com um maior número de utentes”, revela, acrescentando, que Valongo irá receber, em 2020, o Encontro Nacional das Unidades de Hospitalização Domiciliária. Este ano, a primeira edição do evento decorre no dia 31 de Maio, no Convento do Carmo, em Torres Novas.