Os comboios não são os mesmos, que a linha agora até já é electrificada, mas era ali, numa passagem de nível entretanto extinta, a vê-los passar e a abrir e a fechar cancelas, que Maria Augusta Cruz passou muitos anos da sua vida.
Ao contemplar a linha, num local onde já não ia há alguns anos, vêm-lhe à memória várias ‘estórias’ daquele sítio, onde primeiro esteve numa barraca de madeira, onde se abrigava a ela e aos filhos ainda bebés, enquanto exercia as funções de guarda de passagem de nível.
Maria Augusta é uma das oradoras que vai dar um testemunho, este sábado, no âmbito da tertúlia “Pare, Escute e Olhe para ouvir memórias”, integrada no EntreLinhas – Festa do Ferroviário, que decorre em Ermesinde entre sexta-feira e domingo, com conferências, exposições, concertos e mostras, entre outros. O evento pretende homenagear os ferroviários que ajudaram a construir a cidade de Ermesinde.
“Tenho saudades disto”
Do Apeadeiro de Susão, Maria Augusta Cruz, de 78 anos, consegue ver o local onde existia a antiga passagem de nível que guardou durante vários anos. “Não era nada disto o apeadeiro, tinha só um bocadinho de passeio para as pessoas”, conta. Quando o comboio ali parava, recorda, a máquina ficava muitas vezes já em cima da extinta passagem de nível.
Pára de falar quando um comboio se aproxima. “Tenho saudades disto”, diz em voz alta, mas quase como a falar para si própria.
É natural de Recarei, Paredes. Nasceu numa família de lavradores, com 10 irmãos, e ainda trabalhou muito na terra. Casou aos 22 anos – é viúva há décadas – e é mãe de cinco (um já falecido).
Foi em Recarei que ingressou na CP, primeiro “a dar folgas”, quando lhe pediram para substituir uma das funcionárias da passagem de nível. “Quando me pediram eu disse que sim e liguei ao meu falecido para avisar que ia trabalhar. Ele era contra. Mas eu teimei e foi a minha sorte, porque tive um bom emprego”, refere a paredense. A segunda filha nasceu nesse ano de 1968, no Nata: “Estava na passagem de nível quando me começaram a dar as dores, mas ainda trabalhei até de manhã”.
Veio para Valongo em 1969, quando entrou nos quadros da empresa. Teve de ir a Lisboa fazer um exame psicotécnico. Esteve naquela passagem de nível, perto do apeadeiro do Susão, até 1997.
“Primeiro estava numa barraquinha de madeira, com um colchão de palha, depois fizeram-me uma casinha muito bonita”, lembra-se. Eram tempos diferentes. Os turnos eram de 12 horas, da meia-noite ao meio dia e vice-versa. “A cancela ainda era de correr e sempre que vinha um comboio tinha de ser fechada e tínhamos de lhe fazer sinal”, explica Maria Augusta. “Quando eu vim para ali não havia aqui nada. O único carro que lá passava era o do motorista do presidente da Câmara e um carro de bois de um lavrador. Aquilo não dava saída para mais lado nenhum”, acrescenta.
Carros atravessados na linha e miúdos que abriam cancelas
Ali, em Valongo, trazia consigo os filhos, uns pequenos e outros bebés, para aquela “barraquinha de madeira”. Mais tarde as condições melhoraram. “Um engenheiro que passou aqui tinha visto os meus filhos debaixo de um guarda-chuva num dia de chuva intensa. Teve pena. Mandou fazer aqui uma casinha”, recorda. As cancelas também foram mudando, e deixaram de ser de correr para serem levantadas com a ajuda de manivelas.
Em cerca de 35 anos a vigiar passagens de nível, e alguns a morar no edifício da Estação de Valongo, foram ficando histórias. Como aquela vez em tinha a cancela fechada, mas houve uma carrinha desgovernada que a atravessou e ficou na linha. “O condutor ainda correu pela linha fora para alertar o comboio, mas não o viram. A camioneta foi arrastada para lá da curva pelo comboio. Eu fugi com medo”, conta Maria Augusta. Noutra altura, quando fizeram um pavilhão e abriram uma loja de electrodomésticos naquele local, a afluência foi tanta que o trânsito ficou acumulado e a antiga guarda já não consegui fechar as cancelas. “Ficaram carros atravessados na linha e tive de ir a correr com a bandeira dar o alerta”, diz.
Pela negativa um acidente que aconteceu no apeadeiro de Susão quando construíam a auto-estrada. “Houve uma rapariga que atravessou e morreu porque não viu o comboio, nem o maquinista a viu”, lamenta a mulher. Muitas vezes também ficavam animais debaixo do comboio e era preciso chamar quem os viesse retirar.
A par disso, Maria Augusta também não esquece as marotices de miúdos que vinham abrir as cancelas quando elas estavam fechadas.
Passa outro comboio. “O que isto era antigamente e o que é agora. Agora levam pouca gente, antes iam sempre cheios. Mas também há comboios de quarto em quarto de hora”, comenta, enquanto os olhos seguem as carruagens.
Volta ao passado. “Era bonito ver passar os comboios. Os maquinistas cumprimentavam, havia brincadeiras, eram tempos diferentes”, garante.
Em 1983, teve um acidente grave de carro que a deixou em coma. Seguiu-se uma recuperação. Foi a altura em que esteve mais tempo afastada da linha.
Depois de sair da passagem de nível na zona de Susão, Maria Augusta correu vários pontos das linhas, até Barcelos, Braga ou Santo Tirso. Estava nesta última quando saiu da CP por acordo. Reformou-se aos 60 anos.
A paredense tem 10 netos e uma bisneta e mora agora com a filha. Há muito que não anda de comboio. Noutros tempos, não era assim. Ela e a família tinham “regalias” para circular. “Andava de comboio todos os dias, corria tudo, mas por aqui. Nunca fui mais longe que Lisboa e lá só fui porque fui obrigada”, admite.