Em Valongo, está a nascer a Confraria do Brinquedo Tradicional Português. Ainda não há membros completamente definidos, mas já estão os registos efectuados e há até uma proposta de traje e medalhão. Prevê-se a apresentação aquando da Festa do Brinquedo em Alfena.
A ideia já tem alguns anos, está a ser divulgada na mesma altura que a construção da Oficina de Promoção do Brinquedo Tradicional Português em Alfena e coincide com um dos motes do concelho de Valongo: “Promover a valorização, o estudo, a conservação, tudo aquilo que hoje não se pode perder, que é o histórico do brinquedo, sendo esta uma das tradições de Alfena e, se calhar, até a única, a mais entranhada”, refere Joaquim Penela, que avançou com a ideia.
A confraria irá funcionar também como uma entidade que assume todas as memórias relativamente a esta tradição e que irá passá-las a escrito “para as pessoas verem”, sendo, por isso, “uma mais-valia”.
No entanto, deixa bem claro que “não se pode meter política nisto, nem interesses de ninguém”. “Isto é olharmos para uma história, para um artesanato que tem muito valor e não o deixar perder e chamar as pessoas para fazerem parte desta confraria, que sejam dinâmicas e que saibam dar valor àquilo que é esta história”, continua, com convicção.
Para isso, explica que a confraria vai ser composta por cerca de 15 pessoas nos órgãos (Direcção, Assembleia e Conselho Fiscal) e à volta de 50 confrades que estão pensados, para já. Os confrades podem ser: Honorários, que são “aqueles que, independentemente de já terem falecido, foram os artesãos principais e os que estão cá continuam também a ser”; Beneméritos, que “são aqueles que vão arranjar peças e colaborar com o material que vão adquirindo”; E comensais, que “são os coleccionadores, porque se não fossem eles, a maioria do espólio não existia”.
No fundo, vai ser composta por artesãos, coleccionadores e pessoas que lançaram a ideia do projecto do brinquedo noutros tempos em Alfena e no concelho de Valongo, “mas toda a gente pode participar como confrade desde que tenha o mesmo objectivo de preservação e divulgação da tradição do brinquedo”, sublinha.
“Uma confraria não é só estar criada e ponto final. Dá muito trabalho a sua própria gestão no futuro, porque depois temos de nos unir, perceber, participar, chamar outros a participar e isto tem que ser muito institucional, não pode ser de interesses de ninguém, por isso, não vou colocar, politicamente falando, presidentes daqui ou de acolá nestas situações”, destaca.
O Verdadeiro Olhar sabe que já existe uma proposta de traje e medalhão (que será uma das insígnias), elaborados por Joaquim Penela, que é neto do dono de uma das maiores e mais antigas fábricas de brinquedos tradicionais em Portugal.
Por agora, falta completar a lista de pessoas que vão fazer parte da confraria, para depois ser realizada uma reunião com todos os membros dos órgãos para tomarem posse e aprovarem esta proposta. “Foi um trabalho que eu arranquei. Está em andamento. Penso que ficará pronto a tempo da Festa do Brinquedo, em Alfena, para coordenarmos e ser apresentada”, acrescenta.
Porém, o registo desta associação data de 2016. ”Não arrancou nesse ano porque tínhamos de falar sobre os órgãos, havia algumas pessoas que queria que fizessem parte e estavam doentes e também tínhamos algum tempo. Depois, havia aqui alguma instabilidade de ideias, algumas políticas, por isso é que tive de pensar bem porque isto não é político”, explica. “Agora está uma óptima ideia e que vai de encontro depois ao lançamento da oficina. Porque assim também vamos ajudar, colaborar, ser participativos, mostrar interesse, uma vez que é preciso as coisas se desenvolverem e penso que isto une mais as pessoas, que têm de ter uma ideia certa sobre isto”, acrescenta.
A partir daqui, depois de os órgãos tomarem posse, têm de ir propondo actividades, porque “não faltam ideias, é preciso é pô-las em prática”. “Não é uma pessoa só, não sou só eu, não é só o meu irmão que fazemos parte, tem de ser toda uma equipa que tem de trabalhar”, afirma.
Brinquedos começaram por ser feitos em chapa, depois em madeira e, mais recentemente, em plástico
Falar sobre a história do brinquedo tradicional “diz muito” a Joaquim Penela, de 60 anos, e faz com que fique “muito emocionado”. Ao entrar no seu pequeno espaço, uma espécie de anexo que construiu há cerca de uma década ao lado da sua casa, volta-se a ser criança. Há brinquedos antigos por todo o lado, muito organizados em prateleiras e o artesão consegue indicar exactamente onde está cada um deles.
Alguns são feitos de chapa, outros de madeira e os mais recentes de plástico. Mas tudo servia para brincar e prova disso é uma sala de jantar feita com castanhas, linho e alfinetes, que Joaquim Penela conseguiu obter e que tem mais de 100 anos.
Aponta, entretanto, para um dos brinquedos mais antigos que lá guarda: um “rapa” feito em chapa, que viria a ser substituído pelo pião de madeira. Foi oferecido pelo avô, José Augusto Júnior, que dedicou a sua vida ao fabrico de brinquedos tradicionais, contribuindo para que Alfena se tornasse conhecida como a terra deles.
José Augusto Júnior nasceu em Ervedosa do Douro, mas foi cedo viver para Alfena, onde trabalhava como funileiro e onde ia também vendendo alguns objectos que fazia em chapa, como “uma brincadeira”, em algumas feiras. Foi tendo sucesso nessas vendas à medida que ia crescendo, chegando ao ponto em que começou a “ganhar autonomia e a ter ideias”. Acabou por casar, passando a poder trabalhar com aquilo que ia elaborando.
Em 1928, é quando “começa verdadeiramente a fábrica” de brinquedos tradicionais, que foi ganhando progressivamente vários novos modelos de produtos, sempre fabricados em chapa, que era reutilizada das latas de conserva e de tintas, por exemplo.”Nada se deitava fora, tudo se aproveitava e tinha de ser assim”, conta Joaquim Penela.
Dez anos depois, morreu a mulher de José Augusto Júnior, mas um ano mais tarde voltou a casar-se. O seu novo sogro era marceneiro, o que encorajou este artesão a começar a fabricar também brinquedos feitos de madeira.
Retratavam o dia a dia, através, por exemplo, de equipamentos da cozinha e carros em miniatura, sendo sempre fruto da imaginação de José Augusto Júnior. “O meu avô era muito perfeccionista no que fazia. Mais tarde, os outros começavam a querer copiar e era tudo à martelada e ele sempre pôs as coisas com uma perfeição tremenda e, quando não ficava bem, bufava por todos os lados”, lembra. Com admiração, o artesão, aponta que “ele não tinha a quarta classe, tinha era uma cabeça, uma imaginação tremenda e uma vontade de dizer que nada é impossível e criava as coisas”.
Contratou, entretanto, um funcionário para trabalhar a madeira, Manuel Ferreira – mais conhecido como Manuel Encrenca – e outro para a chapa, chamado Armindo Lopes.
Inicialmente, as vendas eram feitas com comerciantes do Porto, muito antes de o transporte se fazer de carro. Iam a pé de Alfena até lá com a mercadoria em cima da cabeça, ou, então, num carrinho de bois que tinham de puxar.
Mais tarde, com o aumento da procura e produção, José Augusto Júnior percebeu que tinha de ir para mais perto da linha de comboio, para que as viagens demorassem menos tempo e fossem mais eficientes. Em 1946, moveu, então, a fábrica para Ermesinde, passando a chamar-se Indústria de Quinquilharias de Ermesinde e, um ano depois, começou a pensar em introduzir o plástico nos brinquedos, conjugando com a chapa. “Era a evolução dos tempos”, conta.
Na Revolução de 25 de Abril, a empresa já estava “enorme” e havia um medo generalizado na classe dos patrões. Nessa altura, o negócio foi passado para os filhos, que fizeram uma nova firma em 1977.
Perto dessa altura, tinha entrado Joaquim Penela para a fábrica. “Foram 38 anos que trabalhei com isto na família e, antes disso, vivia dentro da fábrica, era miudinho e passava a vida lá metido”, conta. Lembra que a empresa já chegou a ter mais de 100 funcionários, “famílias inteiras” e maioritariamente mulheres, que “era a mão-de-obra mais barata”.
“Foram eles que trabalharam. As ideias vieram, mas se não tivesse uma equipa a trabalhar não se fazia nada. Trabalho com qualidade, com profissionalismo”, sublinha, sugerindo que se deveria oferecer “uma menção honrosa a todos os trabalhadores que esta fábrica teve” desde o tempo do seu avô, através até da própria confraria ou da oficina.
“A confraria também serve para isso, para valorizar o historial, as pessoas que tanto trabalharam por isto e se algumas quiserem fazer parte da confraria, muito melhor. Têm uma palavra, a experiência, muita coisa ainda para falar, muita memória”, continua.
Em 1983, a fábrica regressou a Alfena com o triplo da dimensão, mais equipamentos e moldes e produtos novos. Joaquim Penela e mais quatro irmãos resolveram juntar-se e não deixar que toda a história criada até ali se perdesse e tomaram as rédeas da empresa, mas, há cerca de um ano, deixaram de conseguir ter os cinco sócios.
Actualmente, é Júlio Penela e o filho (irmão e sobrinho de Joaquim Penela) que gerem a empresa, que agora chama-se BruPlast. São eles que fazem workshops sobre o brinquedo tradicional, são os donos das marcas e do nome e continuam a arranjar colecções e a trabalhar com o material.
“Temos que ir dando vaga uns aos outros e ir trabalhando para a frente. Mas ainda continuo a ir para lá, se for preciso”, refere Joaquim Penela que diz que costuma também representar a marca, levando alguns brinquedos para as feirinhas.
Trabalho de divulgação da tradição já dura desde 2007
“Isto não pode morrer”, é das frases que Joaquim Penela mais sublinha. Acredita que a oficina e a confraria serão uma “mais-valia na protecção para não parar a divulgação do brinquedo tradicional, porque têm facilidade, oportunidade e algumas ajudas para poder promover”. Explica ainda que a ideia é sempre abranger todo o país e não focar só em Alfena, porque existem outras regiões onde o brinquedo também tem tradição, como é o caso de Ponte de Lima e Guimarães, entre outras.
Paralelamente, foi divulgada recentemente a construção, que deverá arrancar em breve, da Oficina de Promoção do Brinquedo Tradicional Português, em Alfena. O investimento previsto é de 2,5 milhões de euros, com financiamento garantido e permitirá também requalificar e valorizar a antiga Escola de Cabeda, segundo nota da autarquia.
Esta oficina terá trabalho ao vivo permanente, um núcleo de indústrias criativas ligadas ao brinquedo didáctico de madeira e serviços educativos. A envolvente será adaptada para encontros de coleccionadores, workshops, arranjo de peças, actividades de dinamização através da acção das indústrias criativas e exposições temporárias de espólios pessoais. Além disso, serão recriados ambientes em forma de oficina associados ao brinquedo de chapa e plástico e será incluído um espólio museológico inusual.
“Exposições, oficinas para explicar como se faz, tudo isto tem que ser feito. Os museus não podem ser estáticos, têm de ser dinâmicos, senão morre tudo e ninguém sabe como se faz”, sustenta.
Esta oficina juntar-se-á a um trabalho que tem sido feito por Joaquim Penela e a Junta de Freguesia de Alfena desde 2007. Nessa altura, sabendo que carregava consigo muita da história sobre o brinquedo tradicional, a junta desafiou-o a fazer uma exposição, que teve um “sucesso tremendo”. “Isto foi um alerta para dizer que temos que arrancar com a ideia do projecto de museu. Inicialmente, a ideia seria fecharmo-nos dentro de Alfena, mas muito rapidamente percebemos que o brinquedo tradicional é mais abrangente”, explica, referindo que teve que procurar as entidades nacionais ligadas ao assunto, saber quais eram e contactá-las.
Foi feito, então, em conjunto – após a criação de uma equipa -, um trabalho de reunir todo o espólio que fosse possível relativamente ao brinquedo tradicional. “A junta investiu a recuperar muito património. Algum tínhamos nós, outro foi-se buscar aos coleccionadores e às pessoas que ainda tinham muita coisa e isto é muito bonito porque viu-se o empenho”, descreve. Ao todo, foram mais de 400 peças suas que levou até ao espólio que a junta tem, somando-se às cerca de 200 que tem naquele seu escritório.
Como acredita que é preciso ensinar como fazer aos mais novos, Joaquim Penela faz parte de uma associação local e é através dela que, hoje em dia, tem promovido a tradição do brinquedo em escolas. Desde fevereiro que se desloca às salas de aula de 11 turmas do ensino primário de Alfena e ensina-os a criar um brinquedo. A cada turma foi atribuído um modelo (fogões de campismo, carrinhas pão-de-forma, carrinha de caixa aberta, guitarra, uma gaita e dois aviões, no futuro), que têm de elaborar de raiz, para depois ser apresentado na Festa do Brinquedo e ficar em exposição.
“Eles estão a adorar e isto também é dar criatividade aos miúdos e meter-lhes na cabeça a importância que isto tem. Ajuda a reviver as memórias das pessoas e os avós ficam contentes por verem o neto a trabalhar numa coisa que eles já fizeram em ponto pequenino”, ressalta.
O artesão explica que a ideia é que as crianças percebam o porquê de esta tradição ser tão importante em Alfena e “se os mobilizarem a participar nas coisas, dão muito mais valor ao que estão a ver e isto é não deixar morrer”. A iniciativa deverá continuar de forma semelhante no próximo ano lectivo, mas a abranger mais anos de escolaridade e com outros modelos de brinquedos.