Há um ano, toda a gente se identificava com o Carlitos, o célebre semanário «Charlie», vítima de um ataque terrorista. Desta vez, é caso para nos identificarmos com o Teatro Nacional de S. Carlos, que levou à cena a história de 16 carmelitas guilhotinadas pela Revolução Francesa. O tema da ópera não é o terror daquele regime, nem são os algozes, o protagonismo vai inteiro para uma história de amor, uma aventura radical vivida em equipa.
O acontecimento tem direito a destaque por várias razões. Citando Luís Miguel Cintra, que encenou a peça, os espectáculos de ópera costumam ser divertimentos mais ligeiros, ao gosto do público endinheirado que frequenta esse ambiente; desta vez, foi tudo muito a sério. Mesmo a sério. A imprensa elogiou, em título garrafal: «Luís Miguel Cintra ensina-nos a morrer»… Além disso, raramente uma ópera do nosso S. Carlos atinge uma qualidade artística notável; esta foi unanimente celebrada como excepcional. Todos os críticos referiram o maestro João Paulo Santos, o acerto com que escolheu cada uma das cantoras, a qualidade das suas interpretações e da presença em palco, o mérito do encenador. Eu louvo também o livro que documenta o espectáculo.
Esta ópera é a obra-prima de Francis Poulenc, um dos principais compositores da segunda metade do século XX. O libreto é de Georges Bernanos, inspirado numa novela histórica de Gertrud von le Fort.
Os diálogos traduzem a experiência de quem avança pelo caminho surpreendente do amor, serenamente, lucidamente, totalmente. No começo, a generosidade parece suficiente. Depois, a pessoa apercebe-se dos perigos da vaidade, ou da tentação de se comprazer em si. Uma freira comenta o paradoxo: «para uma religiosa, de que serve separar-se de tudo, se não se distancia de si própria?». Quem experimenta uma entrega realmente plena aprende onde está a dificuldade: «subimos uma montanha, mas tropeçamos numa pedrinha!», diz uma freira: o amor brilha no dia-a-dia, nos pequenos gestos. Decisões muito firmes? «Da divina Providência espero somente as modestas virtudes que os ricos e os poderosos desprezam de bom grado: boa vontade, paciência e espírito de conciliação. (…) Pois existem várias classes de coragem, e a dos grandes senhores deste mundo não é a mesma das gentes humildes». O heroísmo até ao martírio empolga os jovens enamorados, mas a maturidade no amor faz descobrir que «uma carmelita que desejasse o martírio seria uma carmelita tão má como um soldado que procurasse a morte». As coisas não são simples. Umas vezes, o ímpeto da generosidade…, outras vezes, a fragilidade humana parece intransponível. Sente-se estremecer o mundo, à volta. Quase não há quem defenda a justiça. «Estão com medo. Toda a gente está com medo. Contagiam o medo entre eles, como a peste ou a cólera em tempo de epidemia». É então, no auge do desamparo, perante a fraqueza própria e a alheia, que se aprende a confiar verdadeiramente em Deus e se reza melhor. «Não somos uma instituição de mortificação, nem conservatórios de virtudes. Somos uma casa de oração; só a oração justifica a nossa vida».
Um dos mistérios da vida espiritual é que a interioridade é um trabalho de equipa, que se atrofia no individualismo. Aquela pequena equipa de freiras entreajuda-se de mil modos, crescem umas com as outras, abertas para a Igreja e para o mundo inteiro. A ópera de Poulenc é brilhante a expressar isto. Estas freiras de clausura vivem e morrem pelos outros. Uma delas observa, que «não morremos cada um para si mesmo, morremos uns pelos outros, ou mesmo – quem sabe? – uns em vez dos outros». Não é um desejo, é uma constatação. Interiorizaram tão profundamente esta realidade que lhes parece natural morrerem «para que nunca faltem sacerdotes em França».
Era justo que esta ópera fosse o tema desta crónica sobre a actualidade religiosa. Religiosa?! Muitos críticos portugueses afirmaram que esta ópera lhes dizia respeito, apesar de não serem católicos. Como é possível, – pergunto eu – se grande parte da ópera se passa a rezar e só se fala de Deus?!
Talvez muitos não católicos conheçam melhor do que julgamos os itinerários surpreendentes do amor de Deus. Porque disso se trata, nesta obra prima de Bernanos e Poulenc, servida magistralmente por um elenco português.