Deslocam-se de carro, de bicicleta ou a pé. Vestem com polos verdes e têm sondas multiparamétricas móveis, dispositivos capazes de registar vários parâmetros físico-químicos da água, assim como tablets. Percorrem as margens do Rio Leça, que atravessa os municípios de Valongo, Matosinhos, Maia e Santo Tirso, num trajecto de 46 quilómetros. Guardam e vigiam aquele que, em tempos, foi considerado o rio mais poluído da Europa, isto porque atravessava uma região de grande densidade industrial.
São os guarda-rios, uma profissão que existiu em Portugal, entre os séculos XVIII e o século XX, tendo sido extinta em 1995. Hoje, em pleno século XXI, o Governo já se comprometeu em reactivar uma profissão que, noutros tempos, tinha como missão fiscalizar a destruição da fauna e da flora, as margens dos rios, linhas de água e efluentes. Também policiavam áreas inundadas e auxiliavam as autoridades em assuntos de segurança, assim como particulares e autuavam os prevaricadores.
E se deixaram as margens dos rios no século passado, os novos tempos e as preocupações ambientais trouxeram-nos de volta. Voltaram e há cerca de um ano que o Leça não está sozinho. Corre, assim como estes quatro ‘guardadores’ de margens que fazem de tudo para que se mantenha límpido.
A ideia dos guarda-rios partiu da Associação Corredor do Rio Leça, um projecto ambiental e de mobilidade, com um forte cariz cultural, económico, turístico e social, que vai permitir a valorização paisagística e ambiental do rio Leça e das suas margens. Esta estrutura trabalha para contribuir para a coesão territorial, unindo o litoral ao interior, através de um canal próprio destinado à utilização dos modos suaves de transporte. Cada município é representado por um destes homens.
Faça chuva ou faça sol, eles vigiam e monitorizam o rio. Vigiam e identificam eventuais irregularidades e que podem passar por alterações à qualidade da água, descargas, deposição de entulhos, quedas de árvores, entre outras situações. O Verdadeiro Olhar entrevistou estes quatro homens, tendo como pano de fundo a natureza e o som das águas inquietas no meio das suas margens.
Chegaram ao local combinado a celebrar esta profissão que abraçaram há cerca de um ano. Daniel Vítor é o mais novo. Tem 34 anos e é natural de Santo Tirso. Paulo Marujo, de Valongo, tem 48 anos. José Silva, 54 anos, é de Matosinho e André Carvalho, o mais velho, com 63 anos, e vem da Maia. São quatro homens que perfazem duas equipas de guarda-rios. André começa logo por dizer que é electricista de profissão e já esteve emigrado em África do Sul, já trabalhou numa quinta e numa fábrica, mas “este foi o melhor trabalho de sempre, não há monotonia, é sempre diferente”, confidenciou ao Verdadeiro Olhar. José Silva atalha: “estamos sempre a descobrir novas coisas e existe uma excelente camaradagem entre todos”. E nota-se.
Paulo Marujo pega no tablet. Através de uma aplicação é possível “georeferenciar e registar todas as ocorrências”. Tiram fotos e o problema é comunicado, no imediato à Câmara Municipal que, depois, encaminha para a entidade ou autoridade gestora.
Actualmente, e devido ao tablet/aplicação, este é um processo célere, porque antes “podia demorar semanas até à sua resolução, agora é quase realizado na hora”, explicou, à margem deste encontro, Artur Branco, o director-executivo da Associação de Municípios Corredor do Rio Leça.
Enquanto Paulo nos mostra a aplicação, José Silva coloca a sonda multiparamétrica na água. “Os níveis estão normais”, diz. Mas no rio também existem sondas fixas que “representam mais olhos sobre um território” que se traduz em quatro milhões de habitantes. Equipamentos vão ser incluídos na plataforma, em breve.
É evidente que as “zonas com maior densidade populacional e com mais unidades industriais são as mais problemáticas”, explicou Paulo, que defende o ressurgimento desta profissão. “Fazia falta e vai promover um melhor meio ambiente”, frisou.
Daniel aponta para uma margem. Há plásticos. “Quando o rio transborda, o que aconteceu muito durante o último inverno, devido às chuvas torrenciais, o lixo “fica preso na vegetação”. Tudo “ocorrências que são reportadas, de forma a serem corrigidas”.
Mas estes lixos são atirados para o meio ambiente pelas pessoas que, cada vez mais, “estão sensíveis” a esta problemática. Ainda assim, aparecem “pneus, sacos, roupas, máquinas” nas margens do rio, revela André. Por isso, a função dos guarda-rios passa, como é evidente, por “sensibilizar as pessoas a alterarem comportamentos”, referiu Paulo Marujo.
O Verdadeiro Olhar deixou os guarda-rios continuarem o seu trabalho e seguiu para a sede da Associação Corredor do Rio Leça, que se situa no Lionesa Business Hub, em Leça do Balio.
À nossa espera estava Artur Branco que nos revelou que “cerca de 280 ocorrências” já foram comunicadas pelos guarda-rios, sendo certo que “para o rio andar bem tem que estar monitorizado”. O trabalho não para nesta associação que tem a braços um projecto que é um “um corredor verde e azul” que servirá as populações da Área Metropolitana do Porto.
É uma transformação que está pensada para o Rio Leça e que, na sua totalidade, só vai ficar concluída em 2030. O investimento é de quatro milhões de euros e é financiados pelo Programa REACT-EU.
Nesta primeira fase, que para começar aguarda o visto do Tribunal de Contas, inclui, além da limpeza da linha de água, através “da retirada de tubos que possam estar escondidos”, vai ser feita a “consolidação das margens” e “cadastrados problemas que possam estar encobertos”, evitando futuros focos de poluição. Também vão ser definidas “20 micro-reservas”. Em todo este processo, a Corredor quer “que este seja um exemplo a replicar” e também pretende “envolver a comunidade em todo este processo”.
Os guarda-rios, também são conhecidos como martim-pescador, são aves de pequeno porte, de plumagem colorida, com um azul brilhante e que habita em rios e lagos. E como dizia Miguel Torga, tem o céu nas asas e a força delas serve para guardar os rios. E é essa força que vemos nesta equipa de quatro homens que se sentem felizes por serem guardadores, quem sabe também de sonhos de todos aqueles que, no século passado, recordam grandes histórias que viveram à beiras das águas límpidas dos rios.