À procura de uma vida melhor, muitos paredenses emigraram para o Brasil em meados do século XIX. Os que fizeram fortunas “consideráveis” e regressaram à terra, tendo apoiado o desenvolvimento da comunidade a vários níveis foram apelidados pela história de brasileiros de torna-viagem. Em Paredes, as marcas ficaram, um pouco por todas as freguesias, pela aposta e construção de casas, muitas delas apalaçadas, escolas, hospitais, igrejas e outras obras sociais.
A Câmara de Paredes quer preservar e dar a conhecer este património, estando a criar no concelho uma “Rota dos Brasileiros Torna-Viagem”. Existem já dois percursos definidos em Louredo e Baltar.
Ajudaram na educação e saúde e deixaram marcas
Os nomes serão desconhecidos para muitos, mas alguns destes paredenses deixaram marcas que ainda hoje perduram.
Adriano Moreira de Castro emigrou para o Brasil aos 14 anos. Fundou uma empresa na área do comércio e fez fortuna. Voltaria à terra natal, em Louredo, por volta de 1901, tendo construído a Casa da Castrália. Graças a ele foi feita uma escola de instrução primária que posteriormente ofereceu à freguesia, ajudando ainda os mais carenciados com bolsas de estudo, donativos anuais ou prémios de mérito, para que todos pudessem estudas. Entre os actos beneméritos, assumiu o pagamento integral do azeite necessário à iluminação de toda a aldeia. Entre outros, ajudou também à construção do hospital com a doação de grandes somas em dinheiro, tendo ainda deixado dinheiro à Santa Casa da Misericórdia em testamento.
Já António Pereira Inácio, de Baltar, partiu ainda criança para o Brasil. Começou como sapateiro, mas depois passou para o comércio, tendo criado o próprio armazém aos 18 anos. Empreendedor ficou conhecido como “Rei do algodão e do cimento” do Brasil, pelas indústrias criadas nessas áreas. Chegou a empregas mais de 10 mil operários e empregados, que junto das fábricas tinham habitações confortáveis, creche, escola maternal, escola primária, campo de jogos, teatro, igreja, farmácia, consultório médico, biblioteca, entre outros serviços. Os seus funcionários aprendiam a ler e escrever. Para Portugal, enviou “avultadas remessas para promover o desenvolvimento da localidade que o viu nascer”. Contribuiu para a criação dos Bombeiros Voluntários de Baltar, ajudou à construção do Hospital da Misericórdia e criou um organismo para ajudar os mais pobres da freguesia de Baltar, investindo na construção ou organização de escolas e de casas para os mais pobres, de uma cantina permanente, de cursos escolares de alfabetização gratuitos e no fornecimento de agasalhos aos necessitados, entre outros.
Um outro exemplo foi o de Elias Moreira Neto que emigrou para o Rio de Janeiro e fez fortuna em actividades ligadas ao comércio e à banca. “Doou 100 contos de réis para a criação de um asilo na Santa Casa da Misericórdia, dando indicações para que os seus bens monetários – 630 contos brasileiros e 400 libras – fossem entregues a esta instituição para se poder prestar auxílio a todos aqueles que mais necessitavam, assim como para a manutenção deste espaço. Doou ainda uma casa e quinta que possuía na freguesia de Gandra, propriedade que deveria ser utilizada pela Misericórdia para a obtenção de recursos económicos”, lê-se num dos textos de Alda Neto, professora de Paredes que, há 20 anos, se dedica ao estudo deste fenómeno no concelho.
Em Cete, Victorino Leão Ramos, empenhou-se na aquisição de terrenos e construiu uma escola nas proximidades da sua Quinta do Verdeal, tendo mais tarde a sua viúva doado casas no mesmo local para que aí funcionasse a escola e o alojamento dos professores.
“Não há características concretas para definir uma casa do brasileiro de torna-viagem. A principal característica das casas dos brasileiros é não ter características”
Quando começou este trabalho de recolha, pouco ou nada existia, confirma Alda Neto, que lançará um livro sobre as Casas dos Brasileiros Torna-Viagem em Junho.
Natural de Astromil, a professora do ensino básico e secundário teve a emigração presente na própria família, sendo bisneta de emigrantes do Brasil e tendo tido os pais emigrados em França.
Licenciada em História da Arte, com especialização em ensino, fez dos brasileiros torna-viagem tese de mestrado e doutoramento. Começou pelos concelhos de Paredes e Penafiel, deixando mais tarde cair o segundo. “Foi muito trabalho de campo e de arquivo. Os brasileiros torna-viagem eram presença constante na imprensa, pelas viagens, pelas igrejas que ajudaram a construir, pelas bolsas de estudo dadas. Encontrei muita informação nos jornais”, recorda Alda Neto.
Em Paredes fez já o levantamento de mais de 20 edifícios, entre casas, igrejas, escolas. Há, a par disso, muito património imaterial. “Eram eles que pagavam muitas festas em nome dos santos padroeiros, missas, fogos-de-artifício e arranjos das igrejas”, explica.
Mas quem são afinal estes homens e mulheres. “O brasileiro de torna-viagem é o português que vai para o Brasil e regressa endinheirado e faz alguma coisa pela localidade e país. Construíram grandes casas e muitas vezes não eram bem vistos devido ao sucesso alcançado. Noto agora uma mudança de mentalidade em que se começa a ter orgulho deste património. É pena que, no meio disto tudo, alguns edifícios tenham desaparecido, alguns forma demolidos e outros transformados”, refere a investigadora.
Nos edifícios existentes não há propriamente uma arquitectura distintiva. “Não há características concretas para definir uma casa do brasileiro de torna-viagem. A principal característica das casas dos brasileiros é não ter características. É a pessoa e o seu percurso que faz a casa, numa miscelânea de estilos e gostos pessoais. As casas eram muitas vezes projectadas pelos próprios”, justifica a docente.
O brasileiro de torna-viagem é sobretudo um fenómeno do Norte do país. Alda Neto quer continuar o trabalho em Paredes e voltar-se também para Paços de Ferreira e Penafiel. Defende mesmo que qualquer rota criada deve depois alargar-se ao Vale do Sousa, rico em património de brasileiros de torna-viagem, como aconteceu com o exemplo da Rota do Românico.
“A conservação e preservação dos edifícios tem de ser feita, num primeiro momento, pelos proprietários. Se não houver esta valorização estas casas vão continuar a cair. É história que se está a perder”, argumenta a paredense, sustentando a importância da população neste processo.
“A partir do momento em que se envolve a população ela vai querer preservar o edifício. A partir do momento em que a população olhar para isto como seu e como algo que é preciso valorizar, 90% do trabalho estará feito”, acredita.
“Está ali uma pérola de Louredo e de Paredes”
São vários os edifícios em Paredes que são legado dos brasileiros de torna-viagem. Alguns ainda estão em uso e bem preservados, como é o caso do Palacete da Granja, agora Casa da Cultura de Paredes, da Biblioteca Municipal, das Igrejas de Paredes e Sobreira ou da Escola do Verdeal, em Cete, entre outros. Muitos deles mantêm-se nas mãos de privados, exemplo do Palacete dos Silva Moreira (Lordelo), Casa de Ernesto Leão (Baltar), Villa Martins (Cete), Casa do Verdeal (Cete) ou Casas dos Pereiras (Baltar). Dos edifícios existentes a Casa da Castrália, em Louredo, é apontada como ex-libris deste conjunto de edifícios.
Edificada em 1909 por Adriano Moreira de Castro, a Casa da Castrália foi a morada do sogro de Joaquim Pacheco durante 80 anos. A família acabou por adquiri-la aos herdeiros do brasileiro de torna-viagem.
São três os co-proprietários actualmente (um deles maioritário) e todos têm já alguma idade. Por isso, justifica Joaquim Pacheco, decidiram vender. “É uma casa que nos diz muito e é emblemática. Está ali uma pérola de Louredo e de Paredes. Temos vaidade nisso e é uma honra termos a propriedade ao nosso cuidado”, garante, admitindo que a casa tem marcas do tempo e precisa de manutenção, mas referindo que ainda tem madeiras e pinturas originais.
Os proprietários defendem que devia ser adquirida pela Câmara de Paredes pela importância do edifício. Joaquim Pacheco realça ainda a importância da rota que está a nascer. “É preciso valorizar, preservar e dar a conhecer este património”, diz.
“Quem sabe se daqui não sairá um centro de estudos e de investigação dos Brasileiros de Torna-viagem em Paredes ou um Arquivo Histórico Municipal?”
Valorizar a memória e a investigação, nas vertentes cultural e turística são as grandes metas da Rota dos Brasileiros de Torna-viagem que está a ser estruturada no concelho, adianta Beatriz Meireles, vereadora da Cultura e Turismo da Câmara de Paredes.
“Nenhum projecto cultural e turístico tem um fim imediato, é um trabalho contínuo de construção de um produto. Assim, tem vindo, desde já, a ser efectivada no terreno, apostando-se, em primeira instância, na investigação, por parte dos Amigos da Cultura de Paredes, destes homens e destas mulheres, brasileiros de torna-viagem, quem eram e o que fizeram por Paredes, por exemplo, na construção de estradas, de escolas, enquanto beneméritos da Santa Casa da Misericórdia”, refere a autarca.
No ano em que se comemoram os 200 anos do nascimento do Conselheiro José Guilherme Pacheco, Beatriz Meireles não deixa de o considerar um brasileiro de torna-viagem, apesar de já ter nascido no Rio de Janeiro, Brasil. “É produto de brasileiros e influenciou, pelo seu grande exemplo, os brasileiros de torna-viagem que se seguiram, prestigiando a política local. É também por essa razão, no âmbito da Comemoração do Bicentenário do Nascimento de José Guilherme Pacheco (1821-2021), que apoiámos o trabalho de investigação de Alda Neto, sobre as Casas dos Brasileiros de Torna-viagem, que será apresentado em Junho”, sustenta.
A par disso, integrado no projecto, estão a procurar incluir os jardins da Casa da Cultura na Associação dos Jardins Históricos. Em muitas das casas, verifica-se a utilização do azulejo, dos quais está a ser feito um levantamento.
Para já estão marcados o Trilho de Louredo da Serra (que integra a Rota dos Brasileiros de Torna-viagem), que irá ser homologado ainda este ano, bem como com o Trilho de Baltar, em duas freguesias em que a presença destas personalidades “é marcante”.
O grande objectivo é atrair visitantes e consciencializar a população. “Nenhum projecto será eficaz se a população do concelho não conhecer o projecto, não se identificar com ele e com as evidências culturais arquitectónicas”, acredita a vereadora.
A maioria dos edifícios pode, para já, ser apenas visto do exterior, sendo que alguns, como a Casa da Castrália, podem ser visitados por marcação na Loja Interactiva do Turismo de Paredes.
“Nem todos os edifícios estão em bom estado de conservação, pelo que a Câmara pondera a aquisição e continuar a trabalhar para estruturar, ainda mais, este belíssimo projecto, bem sabendo que são necessários mais apoios, a nível nacional, para o património cultural. Quem sabe se daqui não sairá um centro de estudos e de investigação dos Brasileiros de Torna-viagem em Paredes ou um Arquivo Histórico Municipal?”, conclui Beatriz Meireles.