Valter Hugo Mãe gosta de voltar a Paços de Ferreira, cidade onde viveu até aos cerca de dez anos. E de todas as vezes que regressa “é como voltasse a uma pessoa, voltasse a alguém”. Foi desta forma que, o escritor começou a conversa com dezenas de pessoas que fizeram questão de o ver e ouvir falar sobre o último livro ou conto, “a minha mãe é minha filha”, que chegou às livrarias em Agosto, e que foi ilustrado por Evelina Oliveira.
Chegou atrasado, mas até se justifica, porque, como disse, quando volta gosta de “estar sozinho e andar de carro para ver alguns lugares” e, por momentos, regressar, quem sabe, à infância. E aproveitou a deixa para dizer que fica “furioso” quando passa por espaços ou edifícios e percebe que “já não existem”.
Éramos crianças muito educadinhas, remendadinhas e fofinhas. Éramos uns pasmados!
Aquele que é um dos maiores escritores da actualidade, nasceu em Angola e viveu a infância em Paços de Ferreira. Depois, foi para Vila do Conde, onde está até agora. E como passou os primeiros anos de vida na capital do móvel, não houve como fugir às conversas sobre aquela época, aqueles tempos. “Éramos crianças muito educadinhas, remendadinhas e fofinhas”. “Éramos uns pasmados”, disse a sorrir, conseguindo arrancar uma gargalhada da plateia.
Apesar de ter as melhores recordações, também não deixou de dizer que Paços era uma terra distante de tudo, porque “não acontecia nada”. Razão pela qual, cresceu com a “convicção que não estava a caminhar para lugar nenhum”.
Quando foi morar para Vila do Conde sentiu uma mudança abissal. Aquela cidade representava a antítese do que vivera até então. “Nas Caxinas vivia-se tudo em sobressalto”, afirmou. Mas a maior desordem que provocou na sua vida terá sido o facto de ter passado a ver-se como “uma vítima”. “Levava coça, era muito lavadinho” e os miúdos õlhavam-no como um “totózinho”.
Foi o suficiente para começar a escrever. O refúgio. E a partir daí, foi sempre a somar letras.
“Paços de Ferreira é o primeiro lugar que me vem à cabeça quando começo a escrever. É a minha fita métrica
Hoje, quando se senta em frente ao computador, o que lhe vem sempre à mente é a cidade de Paços de Ferreira. “Foi o primeiro conceito, o primeiro desenho de lugar”. E, ainda hoje, quando escreve, é o “primeiro lugar” que lhe vem à cabeça e é onde começa a “fita métrica” de todo o mundo de Valter Hugo Mãe.
Ontem à noite, a sala foi pequena demais para tanta gente que quis ver e ouvir o autor de dezenas de livros, que fazem a ponte por géneros como poesia, romance, contos, histórias infantis e antologias. “a minha mãe é a minha filha” é um conto de ternura para quem o lê, mas considerado um “livro esquisito”, pelas palavras do autor.
Escreveu-o há alguns anos. Era uma crónica, mas “voltava sempre a mim”, dado que as pessoas o partilhavam. Sim, a internet tem essa capacidade de “promover textos que se tornam especiais”. Por isso, transformá-lo em livro foi “imposto”, disse.
“A confrontação com o envelhecimento dos nossos pais é um horror. O desamparo” que tem a ver com o facto de não haver nada preparado para nos ajudar enquanto filhos”. E porque “não somos ubíquos”, para lidar com estas situações “deveria existir um sistema de apoio”, considerou. Mas, não existe! E este conto obriga-nos, a nós leitores, a ir mais além daquelas páginas, agride-nos porque nos assusta pensar nos nossos pais. E convence quem o lê a “tratar melhor os nossos pais, os nossos velhos”. E é esse o objectivo desta obra, referiu.
O apego de Valter Hugo à mãe é evidente e ela é a grande inspiradora e personagem deste seu livro que, quando se viu retratada na capa e quase que se olhou ao espalho quando o leu, “ficou contente”, recordou o autor que não tem na escrita o seu único talento. Também é artista plástico, cantor e apresentador.
É pós-graduado em literatura portuguesa moderna e contemporânea, pela Universidade do Porto, e editor, tendo publicado obras de importantes autores brasileiros. Os seus livros são famosos pela diversidade de temas, formas de expressão, prosa refinada e histórias marcadas pela emoção. E, a verdade, é que é um homem de emoções que consegue firmá-las, não só através dos seus livros, mas das suas palavras.
Licenciado em Direito, recusou esse caminho. Era infeliz a ler processos. Insatisfeito, dedica-se à escrita. mas lamenta que Portugal seja um país de poucos leitores. E acabou por sugerir às autarquias que “ofereçam um cheques-livro aos alunos” todos os meses. Se isso acontecesse, daqui a 20 anos “teríamos o desenho de um país muito diferente daquele que temos hoje”. Conseguiríamos “um povo maior e menor manipulação”. Estimular as crianças a ler não passa pelas bibliotecas escolares que são vistas como salas de castigo, tipo cárceres. “Se não te portares bem, vais para a biblioteca!”, disse, em jeito de lamento.
Valter Hugo Mãe vai continuar a escrever e a próxima incursão será à Madeira, como revelou ao Verdadeiro Olhar. Mas diz-se “preparado para falhar”, porque os seus livros não são escritos para agradar a ninguém. Se assim fosse, “era funcionário dos leitores”.
Viver e nunca desistir são transversais na sua vida e promete continuar esta caminhada, porque o melhor livro é aquele que ainda não escreveu. E até lhe podemos chamar herói, porque tem sobrevivido. E como referiu durante a conversa, “sobreviver é uma heroicidade”.