Há memórias boas, outras más. Histórias de trabalho e rigor, mas também de amizade e companheirismo. “Esses Caminhos que Andamos”, um livro com poemas e testemunhos de 12 antigos gaiatos da Casa do Gaiato de Paço de Sousa, em Penafiel, retrata alguns dos retalhos da vida destes rapazes, hoje feitos homens.

A iniciativa foi da Associação dos Antigos Gaiatos e Familiares do Norte e é apoiada pela Casa do Gaiato. O grande objectivo, explicam, é passar uma mensagem às centenas de antigos gaiatos que já passaram pela Casa, estreitar laços e conseguir uma maior proximidade.

O livro é apresentado este domingo, no jardim do Calvário, em Penafiel, pelas 15h00.

“É importante partilhar experiências e dar a conhecer os frutos que saíram do trabalho da Obra de Rua”

A Associação dos Antigos Gaiatos e Familiares do Norte já tinha duas áreas de actuação ligadas às artes, a música e a pintura. Agora decidiram introduzir uma nova mais ligada à literatura e à escrita. Elísio Humberto, antigo gaiato, lançou a ideia que foi apoiada por todos. A Casa do Gaiato emprestou a tipografia e editou o livro.

A Associação, que nasceu de um grupo de amigos, foi formalizada em 2008. Mas desde 1983 que se organizavam convívios para manter os laços “familiares” gerados nos antigos gaiatos. “E para dar o exemplo aos mais novos, para saberem que não estão sozinhos, que o mundo não acaba quando se sai da Obra”, explicam Miguel Rodrigues, presidente da associação, Elísio Humberto, autor da ideia, e Maurício Mendes e Jorge Alvor, também antigos gaiatos. Todos dão o seu testemunho neste livro.

Nas pequenas histórias e nos poemas resumem o que foi viver na Casa do Gaiato de Paço de Sousa e algumas das experiências. “Todos passamos pelo mesmo. Desde o afastamento da família à forma como fomos educados e ganhamos princípios de vida”, contam.

“É importante partilhar experiências e dar a conhecer os frutos que saíram do trabalho da Obra de Rua”, concorda o padre Júlio Pereira, responsável pela Casa do Gaiato de Paço de Sousa. Um trabalho que, sustenta, não tem sido devidamente valorizado. A Casa está a comemorar 75 anos e este testemunho acaba também por ser uma forma de assinalar a data. Neste momento, são cerca de 30 os rapazes que são acolhidos em Paço de Sousa. “Podíamos ter o dobro”, assinala o pároco.

30 poemas e 11 testemunhos de uma “organização desorganizada”

Estes antigos gaiatos são do tempo em que a Casa albergava, com facilidade, entre 150 a 180 rapazes. Todos aprendiam uma arte – desde alfaiate a sapateiro ou trabalhavam no campo ou na tipografia – e tinham a sua função naquela “mini aldeia”. “Era uma organização desorganizada”, lembram. A comunidade, vasta, trazia até Paço de Sousa meninos de vários pontos do país. Muitos, já crescidos, ficaram por ali ou pelos concelhos vizinhos.

Estão os quatro sentados a uma mesa. Trocam histórias. “Lembram-se quando…”, começa um. “E quando o outro fez aquilo”, continua outro. Lembram os dias de trabalho, de escola, de regras e rigor e os dias de divertimentos, traquinices e lutas. E os castigos. O maior era raparem o cabelo.

Vinham de percursos de vida difíceis e, muitas vezes, ligados à pobreza. Foi o caso de Elísio Humberto, que teve a ideia para este livro.

Nasceu no Porto, há 57 anos. Filho e mãe solteira e pai incógnito a vida trocava-lhe as voltas logo à partida. Foram viver para casa da avó, em Campanha, e uns vizinhos apadrinharam-no. Até que a mãe arranjou emprego em Matosinhos. Foram para lá, dormiam num pequeno quarto. Voltariam mais tarde para a Sé, no Porto, em condições idênticas. Elísio tinha apenas cinco anos e, enquanto a mãe ia trabalhar, passava o dia entregue a si próprio. “Passava o dia pelas ruas com os outros catraios. Vinha muitas vezes às tantas da noite. Era um vadio. Fazíamos traquinices e roubávamos fruta”, assume. A mãe era analfabeta e foram os padrinhos que pediram auxílio à Casa do Gaiato. “O Padre Carlos foi-me buscar de comboio. Lembro-me da viagem e de entrar na Casa pela mão dele. Nunca me esqueci e até fiz um poema sobre isso”, explica.

Os primeiros tempos foram difíceis. Fazia falta o carinho da mãe e passou a haver regras. Gostava de escrever, de desenhar e de pintar. Não se integrava muito nos grupos e acabou como acólito. Por volta dos 11 anos, acabou à frente da máquina de endereçar jornais para os assinantes. “Eram 75 mil na altura”, recorda. Ficou nesse posto “de responsabilidade” por três anos. Era muito trabalho, reconhece.

Começou em confrontos com o padre que dirigia a Casa e, por volta dos 15 anos, disse que queria ir embora. Não foi levado a sério. Saiu e não voltou. Foi procurar a mãe e dormiu alguns dias debaixo dos barcos na doca de Matosinhos até lhe arranjarem um anexo. Trabalhou no carregamento do sal, numa fábrica de café e tratamento de castanha e ia às chamadas da doca para descarregar contentores. Casou por volta dos 20 anos. Foi depois motorista da Unicer e de uma empresa de informática até ficar desempregado há cerca de oito anos. Mora em Campo, Valongo.

Quando saiu da Casa do Gaiato levou apenas a roupa do corpo e uma mala com livros, recortes e poemas. Também já escrevia. Talvez tenha sido daí que lhe veio agora a inspiração para fazer poemas, sonetos sobretudo, que contam retalhos da vida na Casa de onde estava afastado até há poucos anos. Neste livro estão 30, ilustrados pela filha. Retratam o toque da sirene, o tribunal, o castigo de rapar o cabelo, a Casa ou o Pai Américo.

“A educação e as regras que me deram aqui ficaram para a vida”

“Eu era diferente. Tinha pai e mãe. Ele era alcoólico e ela era operária fabril de uma fábrica de conservas em Olhão e trabalhava e tomava conta de nove filhos”, conta Maurício Mendes, hoje com 57 anos, funcionário da Câmara Municipal de Penafiel.

Aos 10 anos, faltava frequentemente à escola e ainda andava na primeira classe. “Chegava a casa à meia-noite porque estava no café a ver TV”, dá como exemplo. A assistente social da fábrica onde a mãe trabalhava percebeu que não podia lidar com tudo. Conhecia a Casa do Gaiato e perguntaram-lhe se queria vir. “Disse que sim. Era uma aventura”, salienta. “Cheguei aqui e ao fim de três dias fugi”, acrescenta. Acabou por voltar e integrar-se aos poucos.

Na Casa tinha regras e horários e tarefas a cumprir. A adaptação à escola, com um professor exigente, também foi difícil. Aprendeu a arte da tipografia, estudou à noite e foi vendedor do jornal. Fez a tropa e seguiu-se “um virar de página”: casou.

“A educação e as regras que me deram aqui ficaram para a vida. E também fiz aqui amigos”, resume o antigo gaiato que hoje vive em Paredes.

“Gostei de estar cá. Havia regras severas e castigos mas também companheirismo e alegrias”

José Miguel Rodrigues tem 61 anos. Tinha cinco quando chegou à Casa do Gaiato de Paço de Sousa. “Vivíamos numa casa pobre e com muitas dificuldades e quando o meu irmão, que já era aqui Gaiato, foi para a Casa de África o padre foi-me buscar”, explica.

Na Obra todos tinham o seu papel, “os irmãos mais velhos tomavam conta dos mais novos”, e desde pequeno lhe foram dadas tarefas, desde limpar as ervas da calçada a tratar de galinhas.

Recorda-se havia tempo para jogar à bola e para fazer traquinices que lhe valeram “carecadas e algumas tareias”. Também se interessou por música, um gosto que ainda mantém, e tentou fazer uma viola com uma tábua. Acabaria por ganhar uma viola que aprendeu a tocar sozinho. Montou-se um conjunto e actuavam em festas.

Até que, chegado aos 16 anos, foi para tipografo compositor enquanto estudava à noite, no Liceu de Penafiel.

Seguiu-se o serviço militar e quando regressou, a tipografia estava diferente e mais moderna. Acabou por tirar a carta e empregar-se como motorista. Seguiu-se o casamento. Ainda hoje mora em Paço de Sousa e preside à Associação dos Antigos Gaiatos e Familiares do Norte.

“Gostei de estar cá. Havia regras severas e castigos mas também companheirismo e alegrias”, sustenta. Ficaram amigos e cumplicidades. “Estávamos todos no mesmo barco”, diz.

“Naquela altura erámos mais família que agora. Havia mais dificuldades, mas éramos mais felizes”

A história de Jorge Alvor é a mais diferente. “Eusébio”, como ainda hoje é apelidado, foi “capturado” pelas tropas portuguesas na Guiné-Bissau, aos cinco anos, depois de um bombardeamento na sua aldeia. Esteve dois anos no quartel, onde dormia na caserna e fazia recados, e depois um “padrinho”, que agora considera pai, trouxe-o para Portugal. “Teve que pagar 500 escudos para me trazer”, recorda. Foi então encaminhado para a Casa do Gaiato, onde viveu dos sete aos 20 anos (cinco deles no Lar do Porto).

Cumpriu depois o serviço militar, casou (e teve três filhos) e trabalhou num cabeleireiro no Porto. Durante muitos anos foi também vendedor do jornal O Gaiato e era “acarinhado pelas pessoas”, conta.

Hoje, mantém-se como “obreiro” da Casa do Gaiato. Trabalha na tipografia há 29 anos, como impressor e encadernador e ensina a arte aos actuais rapazes da Obra de Rua do Pai Américo.

“Naquela altura erámos mais família que agora. Havia mais dificuldades, mas éramos mais felizes”, acredita o homem de 60 anos.

Os colegas lembram os dias em que, no pós-25 de Abril, ele, negro, foi eleito “chefe maioral” da casa. “Aqui éramos na maioria brancos e elegemos um negro. Em Angola elegeram um chefe branco. Por ser caricato e provarmos aqui que não havia racismo até foi para o jornal O Gaiato”, realçam.