Durante um ano, uma equipa de proximidade actuou nos concelhos de Penafiel e Marco de Canaveses, “procurando contribuir para a prevenção, controlo e diagnóstico da tuberculose, bem como para a promoção da literacia e adesão ao tratamento”.
O projecto “Não Vale TB”, implementado pela APDES – Agência Piaget para o Desenvolvimento, em parceria com entidades locais e com o financiamento da Direcção-Geral da Saúde, foi direccionado a pessoas em situação de vulnerabilidade, como os consumidores de álcool e drogas, os trabalhadores do sexo, pessoas em situação de sem abrigo, migrantes e desempregados. A meta foi quebrar mitos, pelo que além das acções de sensibilização e rastreios gratuitos foi ainda realizado um podcast informativo sobre a tuberculose, com profissionais da área, emitido numa rádio local.
O trabalho realizado, entre Março de 2021 e Fevereiro de 2022, nestes concelhos e sobretudo em sete freguesias com “alta incidência” que foram priorizadas, com uma equipa composta por uma enfermeira, uma psicóloga e uma técnica superior de intervenção psicossocial, permitiu perceber que ainda há “muito estigma” e falta de informação sobre a tuberculose. “Há muitas crenças e mitos em torno da tuberculose e, principalmente, uma carga moral atribuída aos comportamentos que só levam ao isolamento da pessoa e à desmotivação diante do tratamento”, refere Ana Paula Carvalho, coordenadora do projecto.
“Saber que a tuberculose é uma doença infecciosa e, acima de tudo, comunitária, é o primeiro passo para combater os estigmas e a discriminação”, defende, acreditando que ainda há muito a fazer sobre esta temática.
Leia a entrevista.
O projecto Não Vale TB nasce porquê e em parceria com que entidades?
O projecto “Não Vale TB” nasce para apoiar a concretização dos objectivos previstos nos Programas Nacionais para a Infecção VIH, SIDA e Tuberculose de junto públicos-alvo considerados como prioritários no acesso ao diagnóstico e tratamento para a Tuberculose Pulmonar, atendendo à sua baixa ligação aos serviços de saúde convencionais e à baixa adesão à terapêutica dos casos activos ou latentes, como co-adjuvante no processo de saúde.
Além da abrangência de contextos locais, com parcerias com cafés, restaurantes, centros de dia e as próprias Juntas de Freguesia, possibilitada pelo trabalho de proximidade, também foi articulação estreita com entidades parceiras – como os Centros de Diagnóstico Pneumológico, a Comissão Intermunicipal do Tâmega e Sousa e a Rádio Clube de Penafiel.
Que metas tinham definidas e foram alcançadas?
O “Não Vale TB” pretendia actuar junto de populações em situação de maior vulnerabilidade, procurando contribuir para a prevenção, controlo e diagnóstico da tuberculose bem como para a promoção da literacia e adesão ao tratamento na sub-região do Vale do Sousa. Neste sentido, foram adoptadas estratégias para cada um destes eixos com os seguintes resultados: 210 utentes contactados (sendo 166 pertencentes a população de risco); 196 Inquérito de Sintomas aplicados; 16 encaminhamentos para centros de diagnóstico pneumológico (29 encaminhamentos no total para a rede formal de cuidados: nove unidades de saúde familiar, um hospital); quatro acompanhamentos de utentes com tuberculose latente; 86 contactos com parceiros (articulação em rede); 29 contactos com espaços comunitários (cafés, restaurantes, etc); 57 articulações com parceiros (unidades de saúde familiar, agrupamentos de centros de saúde e câmaras municipais, etc); 12 acções directas na comunidade (rastreios gratuitos); 21 programas de rádio (também disponíveis em formato podcast), assim como lançamento de um folheto informativo e divulgação de conteúdos nas redes sociais.
Quais as principais acções desenvolvidas junto destas populações?
Foram realizadas acções de sensibilização, literacia e prevenção como, por exemplo, nos centros de dia, junto da população idosa, e rastreios gratuitos na comunidade.
A quantas pessoas conseguiram chegar?
Directamente beneficiados foram 210 utentes, mas sabemos do impacto da abordagem no entorno dos utentes, nomeadamente na família, além de todo o conteúdo de qualidade disponibilizado através dos programas de rádio e materiais informativos dispensados.
Lidaram de perto com pessoas infectadas. Sentem que ainda há vergonha e estigma? Há medo de infectar a família e falta de condições para o evitar?
Ainda há muito estigma e, principalmente, falta de informação correcta sobre a tuberculose. Encontramos imensos casos em que as pessoas tentavam justificar o quadro da doença com situações que as tirassem desse lugar desconfortável que é associado ao adoecimento, como a pobreza e questões comportamentais.
Saber que a tuberculose é uma doença infecciosa e, acima de tudo, comunitária, é o primeiro passo para combater os estigmas e a discriminação. Todas as pessoas, em maior ou maior grau, estão susceptíveis a contrair a bactéria. Ainda que haja co-relação com alguns hábitos (como o consumo abusivo de álcool) ou a actividade laboral, no caso dos pedreiros, essa co-relação deve-se à maior exposição e vulnerabilização do sistema imunitário e não ao contexto em si. A tuberculose é uma doença oportunista e como tal terá como alvo pessoas com baixa imunidade, seja por co-infecção do VIH seja pela presença da silicose ou um processo oncológico, ou mesmo em períodos de desenvolvimento do sistema imunitário, como no caso das crianças menores de seis anos, e no período de decréscimo, como no envelhecimento.
Acreditamos que muitos dos medos e inseguranças da própria pessoa infectada e da comunidade sejam por falta de informação correcta. O saber é poder! Empoderar estas pessoas através de uma intervenção de proximidade tem um potencial disseminador incrível que pode mudar a realidade de todos.
De que forma a pandemia influenciou ou não a prevenção e transmissão desta doença?
Ainda não sabemos ao certo os impactos directos e indirectos da pandemia na problemática da tuberculose, mas é possível inferir algumas questões: o uso de máscara pode ter ajudado no controle da disseminação e também no combate ao estigma já que era usada por todos e não só por quem estava em tratamento; o distanciamento social e a diminuição de circulação de pessoas pode ter ajudado também no controle da tuberculose, mas também pode ter retardado diagnósticos e tratamento levando a mais casos graves e resistentes.
Ter tuberculose exige um tratamento extenso durante um longo período de tempo com tomas diárias e presenciais de medicação. Há dificuldade no acesso a estas tomas? Há, por exemplo, quem não tome os remédios por falta de transporte ou dificuldades de transporte até ao centro de saúde?
O tratamento da tuberculose activa é preconizado pela Organização Mundial de Saúde com a Toma Observada Directa (TOD) como forma de acompanhamento, supervisão e motivação já que é um tratamento longo e com medicação com potenciais efeitos colaterais. Através dos centros de diagnóstico pneumológico esta medicação é gratuita e pode ser ofertada nas unidades de saúde ou até mesmo ao domicílio. No entanto, pode sempre haver constrangimentos de acesso por parte dos utentes, especialmente nessa região já que a população está muito dispersa pelo território e não podem contar com serviços de transportes públicos eficazes. Além, claro, das questões económicas e dos transtornos da toma diária, seja pela deslocação sempre no mesmo horário seja pela mudança de hábitos como a ingestão de álcool. O tratamento traz, desta forma, imensos impactos para a vida dos utentes, por isto, é preciso apoio e vinculação para que haja condições e motivação para a realização do tratamento que é importante para eles e para toda a comunidade. Trazer esta co-responsabilização, sem julgamentos, pode ser uma factor de incentivo na adesão ao tratamento.
Quais os principais problemas que detectaram neste vosso trabalho de campo? E que medidas acreditam que podiam ser adoptadas para reduzir a tuberculose nestes concelhos?
Acredito que a principal barreira tenha sido o estigma e o preconceito, no sentido genuíno da palavra de pré conceber as coisas. Muitas crenças e mitos em torno da tuberculose e, principalmente, uma carga moral atribuída aos comportamentos que só levam ao isolamento da pessoa e à desmotivação diante do tratamento. Para mudar este cenário acredito ser importante comunicar mais e melhor sobre o tema. Informações claras, directas e adequadas à população, com envolvimento comunitário e o envolvimento dos decisores políticos, inclusive na forma de financiamento directo. A tuberculose é ainda a doença infecciosa que mais mata no mundo apesar de haver tratamento. Como Albert Einstein disse brilhantemente: “Insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes”. Precisamos mudar as lentes com que olhamos esta questão e ir além do que já é feito há tanto tempo. Há muitas coisas positivas, ressalvo a modalidade porta aberta dos centros de diagnóstico pneumológico, mas ainda há muito a fazer!