Um é de Paredes, o outro de Penafiel. Participam em algumas das provas mais duras do mundo, na ultramaratona e no triatlo. Em comum têm o clube que integram, o Paredes Aventura Clube, e o facto de serem exemplos de superação em provas de resistência física, mas também mental. São atletas que procuram superar limites e não ganhar medalhas. Atletas para quem cortar a meta é sempre uma vitória. São atletas especiais. Conheça o Augusto Pinto Oliveira e o Pedro Ventura.
Augusto Pinto Oliveira viveu uma vida de excessos que o levou ao limite. Esteve perto da morte e voltou. E acredita que o acidente e o coma porque passou lhe mudaram a vida. Mas só encontrou o caminho certo quando reencontrou o prazer de correr. Cinco anos depois, este funcionário dos CTT dedica-se a fazer ultramaratonas.
O paredense acaba de completar, com sucesso, mais uma prova de 170 quilómetros, em Andorra, naquelas que são consideradas “as cem milhas mais duras do mundo”. Foi o primeiro atleta de Paredes a fazer esta prova de resistência, terminando-a e cerca de 60 horas e 45 minutos. Na prova participaram 420 atletas.
“Não são os atletas mais rápidos, mais fortes, com mais treino, com melhor material e que terminam a prova com menor tempo que são os vencedores. Os vencedores são aqueles que se adaptaram melhor, aqueles que se recusaram desistir apesar das dores, do cansaço, do sono, da exaustão e das dificuldades que passaram e que conseguiram terminar, independentemente do tempo que passaram em prova”, defende o atleta.
Apesar das dificuldades encontradas, e do teste físico e mental que estas provas representam, o paredense não esconde o orgulho em “terminar uma prova com esta dureza”, que constitui “um feito único”. “Foram horas e horas em que suor, lágrimas e sangue se transformaram em endorfinas, em adrenalina e em neuro adrenalina e deram lugar a um momento único, a um momento que jamais será esquecido. Eu acreditei, eu consegui”, testemunha.
Em Setembro vai fazer uma outra prova, ainda mais difícil. Uma ultramaratona de 330 quilómetros, nos Alpes italianos, que vai contar com a presença de seis portugueses, escolhidos por sorteio. O tempo limite da prova será de seis dias e seis horas. “O mais difícil vai ser controlar os tempos de descanso”, acredita o atleta. “Já me superei, agora quero voltar a superar-me. Gosto de cortar a meta e dizer ‘eu consegui’”, garante Augusto Pinto Oliveira.
“Quero que outros vejam em mim um exemplo. Que percebam que mesmo que errem na vida estão sempre a tempo de mudar”, explica.
Quer saber como é correr uma ultramaratona? Conheça o relato na primeira pessoa de Augusto Pinto Oliveira sobre a participação nesta prova e as dificuldades que sentiu. Este texto irá integrar o livro que está a escrever sobre a sua história de vida.
“EU ACREDITO, EU CONSIGO”
“Não são os atletas mais rápidos, mais fortes, com mais treino, com melhor material e que terminam a prova com menor tempo que são os vencedores. Os vencedores são aqueles que se adaptaram melhor, aqueles que se recusaram desistir apesar das dores, do cansaço, do sono, da exaustão e das dificuldades que passaram e que conseguiram terminar, independentemente do tempo que passaram em prova. Os vencedores também são aqueles que tiveram a ousadia, a coragem e a força de vontade de se aventurarem nas montanhas de Andorra.
Andorra, oficialmente Principado de Andorra, é um pequeno país europeu, com uma população de 79 mil habitantes, localizado na cordilheira pirenaica entre o nordeste da Espanha e o sudoeste da França. Um pequeno país cercado por montanhas, em que, a cada esquina, nos deparamos com paisagens arrebatadoras, onde nos sentimos pequenos quando confrontados com a sua beleza, com a sua dimensão. De todos os locais surgem aventureiros, desde caminhantes, praticantes de BTT, parapente e de muitos outros desportos radicais. As pequenas paróquias (aldeias) deste pequeno país são soberbas, com as suas casas tradicionais, em que a simpatia a amabilidade e a boa disposição das populações nos transmitem uma serenidade, uma cumplicidade única. Nestes locais vive-se sempre em ambiente de aventura, de desporto, de ar livre e de liberdade.
Ordino (1298 metros de altitude) é uma paróquia do noroeste do principado de Andorra, com 3.309 habitantes. Este local de partida e de chegada deste Ultra Trail é arrebatador. Estamos mergulhados num ambiente de festa, de convívio, de partilha, as nossas emoções estão ao rubro. Transformamos este espaço num local de culto, em que o levantamento dos dorsais torna-se o expoente máximo do dia ou da hora antes da partida. Ao longo deste ritual, vamo-nos cruzando com pessoas que conhecemos deste mundo do Trail, com amigos que fomos criando ao longo dos anos, com pessoas que fomos conhecendo nas redes sociais, que fomos acompanhando e que nos acompanham nas publicações.
Ordino acorda de madrugada e, atleta após atleta, todos vão saindo de dentro dos carros que, lentamente, vão invadindo as ruas desta pequena aldeia. Atletas equipados a rigor, muitos deles fazem-se acompanhar pelas suas mulheres, namoradas, amigas (os), que vão dando cor à praça principal. Vermelhos e verdes florescentes, brancos, pretos e amarelos fundem-se numa grande massa humana, abrilhantando o grande pelotão. Esta é a hora de tirar mais umas fotos, mais umas selfies, para partilhar nas redes sociais. Trocam-se beijos, abraços e os mais variados cumprimentos.
1.º Dia – A luta constante
Cheguei a Ordino ainda muito cedo. Ensonado, enquanto comia mais uma sandes, ia-me dirigindo para o local de partida. Aos poucos ia sendo assolado por um nervosismo, não incomodativo, à medida que a hora da partida se aproximava. Um estado de nervoso que em mim funcionava como um regulador saudável, pois permitia centrar-me especificamente na prova. Desta forma, prestava atenção a todos os pormenores que são essenciais.
Ia ajustando o CamelBak e ia testando a sua modelação ao corpo. Tinha que me sentir confortável, confiante e o resto era da minha responsabilidade, pois na montanha ia estar por minha conta e risco. Só podia contar comigo e com as decisões que ia tomando ao longo da prova e com o material que tinha decidido levar. Só isso podia fazer a diferença entre o continuar e o desistir em certas alturas da prova.
Aos poucos, os atletas iam-se aglomerando dentro da área de partida, um após outro iam passando o controlo de material e juntavam-se aos restantes. O speaker incentivava os atletas e ia apresentando alguns que já eram finalistas nesta prova, ao mesmo tempo que anunciava quantos minutos faltavam para a partida. Pairava sobre os atletas um certo nervosismo, uns iam-se cumprimentando, outros estavam encostados às barreiras que separavam os atletas do público e dos acompanhantes. Eram distribuídos os últimos beijos, as últimas palavras de incentivo.
O relógio aproximava-se do 0:00 e eu, depois de passar a área de controlo, fui-me diluindo no meio dos atletas. Andava à procura da restante comitiva portuguesa e fui-me aproximando da frente da área de partida. Aos poucos lá me consegui aproximar dos portugueses: Pedro Marques, Manuel Quelhas, Hélder Pinto, José Silva, Rúben Monteiro, Miguel Marques e Nuno Ferreira. Nesta comitiva lusa também estavam o Júlio Costa e o Vasco Lopes. Fomos trocando cumprimentos, saudações e incentivos. Estávamos todos juntos para enfrentar este gigantesco desafio.
O speaker pedia um minuto de silêncio em memória das vítimas do atentado de Nice. De repente as manifestações de alegria, os sorrisos, as brincadeiras e os rostos de alegria cobriram-se com um semblante de pesar, de tristeza. Este minuto de silêncio foi escrupulosamente respeitado, nem uma única palavra se ouvia.
O Rei e a Rainha, dois bonecos que são um dos símbolos desta prova avançam pelotão adentro. A alegria, o entusiasmo e a euforia manifestam-se efusivamente: estávamos a chegar à hora 0:00! O rufar dos tambores faz-se entoar por toda a Praça Maior. As palavras de incentivo do speaker e os foguetes com confettis levam ao rubro os 420 atletas e todos aqueles que assistiam à partida, criando um momento épico. Os meus sentimentos mais profundos estavam ao rubro. Sinto-me como que contagiado, emocionado e invadido por momentos de êxtase.
Eu, o Manuel Quelhas e o Hélder Pinto fomos mantendo o contacto visual durante os primeiros quilómetros. O público ia incentivando os atletas, gritavam pelos nossos nomes e pelo nome do país (estampados no dorsal). Nesta primeira hora de prova, os sorrisos, as trocas de palavras, o cantarolar e as graçolas iam entoando por toda a serra. Nesta fase inicial andávamos num constante sobe e desce, mas sempre a caminho do primeiro grande pico, com 1.532 metros de altitude, o Collada Ferroles. Como tudo o que sobe também desce, apresentam-nos uma grande descida até ao primeiro abastecimento ao quilómetro 21, em Sorteny. Tinham sido à volta de 4 horas, por bosques e riachos em que o sol e o calor começavam a dar sinais da sua presença e adivinhava-se um dia quente e seco. Em Sorteny fundem-se um conjunto de dialetos, de culturas, de nacionalidades e de cores. Alguns atletas, incluindo eu, começavam a sentir um ligeiro cansaço. Mas depois de comer, de me refrescar e de atestar os bidons lá parti para mais uma dura jornada até ao próximo abastecimento que ficava a 10 km, seriam mais umas 03:00 h, pois cada vez íamos subindo mais. Esta segunda etapa que começava agora era toda ela acima dos 2.000 metros de altitude, com os picos mais altos aos 2.508 e aos 2.751.
Nesta altura da prova tento sempre manter-me concentrado, pois geralmente é nestas fases iniciais que tendencialmente faço entorses e caio. E não podia de forma alguma sofrer uma lesão nesta altura de prova pois, conhecendo-me, sabia que não iria querer desistir (coisa que nunca aconteceu em 5 anos) e iria condicionar os 140 quilómetros de prova que faltavam.
Para mim, os primeiros 30 quilómetros são sempre sofredores, enquanto não me adapto aos ritmos. Depois, quando começo já a ter algumas horas de prova, começo a sentir-me melhor. Já fiz o processo de adaptação quer a nível de material, quer a nível cardíaco e é a partir deste processo que vou interiorizando os tempos que faço a cada 10 quilómetros e vou estabelecendo metas físicas, mentais e emocionais.
Em três horas vou de um abastecimento ao outro. O quilómetro 31 estava atingido em Arcalys (2.220 metros). Seguem-se 13 quilómetros muito complicados, com duas grandes subidas a pique e outras tantas descidas que estavam a preparar a super subida a Comapedrosa (2.950 metros).
Durante o tempo que me separa de um abastecimento ao outro, fui traçando um objetivo: não quero fazer a subida ao cume mais alto de noite, pois segundo os relatos que tinha lido e ouvido, esta era a pior parte da prova. Durante todas estas horas fui desfrutando de uma beleza natural e única, em que lagoas, riachos e miradouros que nos esmagavam com a sua imponência. O tempo estava quente e o sol escaldante. A amplitude térmica era grande e passávamos dos 25 graus aos 10 num curto espaço de tempo. Em certas alturas da noite as temperaturas desceram aos 0 graus.
A poucos metros de L´Estany (ao quilómetro 44) ouço o meu nome e algumas pessoas gritam por Portugal. É uma comitiva de acompanhantes portugueses que nos recebia de forma entusiasta e fervorosa. Aqui neste abastecimento tinha que repor todas as minhas energias, fazer uma boa alimentação, hidratação, pois pela frente tinha a subida aos 2.950 metros de altitude. Eram 5 quilómetros na vertical, por uma paisagem agreste, lunar, em que não existia qualquer tipo de vegetação. Neste abastecimento tive uma ajuda surpresa. A Esmeralda Melo (a minha acompanhante há dois anos nestas loucuras, que às 00:00 ia partir para os 85 quilómetros), que além de me presentear com um Red Bull também tratou da minha hidratação e alimentação. Além de me incentivar para esta mega subida disse-me que os atletas lusos já tinham passado quase todos e que alguns já estavam em dificuldade.
A subida a Comapedrosa é brutal. São 5 quilómetros verticais, pedra sobre pedra, em que cada metro é vencido a todo o custo. Lentamente, vou vislumbrando o topo, com uma pesada respiração. Cada metro neste território é uma conquista. Ao atingir o que eu pensava ser o topo (ainda faltavam algumas centenas de metros), sinto-me esmagado pelos últimos metros. Além da vista deslumbrante que me fascinou, deparo-me com uma descida brutal, a pique, que se estende por todo o vale. Ao atingir os 2.950 metros sou recebido como um herói. Um português dava-me as boas-vindas e, depois da foto da praxe, precipito-me montanha abaixo. Esta descida tornou-se mais dolorosa do que a subida. Neste momento só pensava que queria chegar ainda de dia ao quilómetro 50, em Refugi Comapedrosa. Começava a sentir os pés inflamados, pois começava a perceber que tinha feito uma má opção ao escolher o tipo de sapatilhas que tinha levado para esta parte da prova.
O sol começava a pôr-se e a esconder-se por detrás das montanhas e um lusco-fusco ia espalhando lentamente a escuridão por todo o vale. Corria e caminhava sozinho já há algum tempo, mas sempre focado. Tinha que conseguir estar até às 09:00 da manhã no quilómetro 73, em Margineda, de preferência até um bocado antes, pois tencionava dormir um pouco para repor forças para o dia seguinte. A descida ia arruinando cada vez mais os meus pés. Neste momento já praguejava e dizia em alto e bom som todos os palavrões que me assolavam as ideias. Ao fim de 6 quilómetros, em que demorei aproximadamente 04:00, entrava no Refugi de Comapedrosa que estava cheio. Alguns atletas estavam deitados no chão, outros nuns beliches, muitos davam por terminada aqui a sua odisseia. Aqui encontrei o Nuno Ferreira que, depois de umas quedas, apresentava muitas queixas e não tinha condições para continuar. Agradeço ao Nuno pelo apoio que me deu, pelas barras energéticas e pelos géis. Enquanto me alimentava e carregava as minhas baterias fisiológicas (e também carregava o frontal e o relógio), chegou o Miguel Marques que, teimosamente, apesar de já estar em dificuldades gástricas, fez questão de passar Comapedrosa e juntar-se ao Nuno. Ambos me incentivaram e me aconselharam. Eu que, erradamente, tinha pensado que a descida que tinha acabado de fazer era a mais complicada e a mais agreste, estava enganado. O pior estava para vir. A descida para Margineda era muito, muitíssimo complicada, em termos comparativos com uma prova em Portugal (na minha perspetiva não existe nada tão agreste, brutal e perigoso em provas nacionais). Disseram-me “é fazer a Besta” (Serra da Freita) ao contrário, só com maior distância, maior desnível e perigosidade, e disseram-me para eu ter prudência e calma embora não pudesse perder muito tempo, pois tinha a primeira barreira horária aos 73 quilómetros (09:00 da manhã).
Voltei ao trilho. Esperavam-me 23 quilómetros de dureza extrema e, se até aqui estava a demorar cerca de três horas para fazer 10 quilómetros, tinha que manter este ritmo até Margineda. Uma ideia acompanhava-me: “Tenho que conseguir”. E pensava no que já me tinham dito antes desta prova, se conseguisse chegar aos 73 quilómetros tinha capacidades para fazer o resto.
Corria e caminhava novamente sozinho, sem nunca desanimar. Nem por um momento pensei que não conseguia, mantinha-me focado. Depois de umas subidas e descidas não muito intensas (comparativamente ao que já tinha feito) começo a descida vertical, extremamente técnica, dura, agreste. Lá do alto avistava a povoação, mas esta mantinha-se sempre distante e a progressão era lenta e dolorosa. O sol voltava a nascer e deixei de precisar do frontal, o que tornou menos dolorosos os poucos quilómetros que faltavam para Margineda. Chego a este abastecimento ensonado, cansado e com os pés numa lástima. A primeira coisa que fiz foi ir buscar o meu saco e procurar uma cama rapidamente. Não comi nada e só me descalcei. Pus o despertador para daí a uma hora. Tinha duas horas para dormir um pouco e preparar-me para continuar.
Faltavam 10 minutos para as 9:00 (hora de fecho) quando um elemento da organização avisava os atletas que quisessem continuar que tinham que abandonar o local brevemente. Comi à pressa e enchi os bidons e estava de novo trilho. Continuava sozinho nesta loucura. De vez em quando lá tentava dialogar com alguns atletas que iam passando por mim, mas sem efeito. Não falavam português e eu, naquela altura, não conseguia expressar-me noutra língua que não fosse a minha. A partir daqui estava à procura de um grupo para me juntar, mas sem sucesso, pois uns tinham ritmos mais lentos do que eu e outros estavam mais fortes.
2.º Dia – O dia dos verdadeiros desafios
Tinha aguentado a primeira noite, tinha cumprido com as barreiras horárias e, embora tivesse pouca gente atrás de mim, parti com todo o entusiasmo, força, consciência e resiliência. Estava disposto a fazer os restantes 97 quilómetros, acontecesse o que acontecesse. Não iria desistir.
Com outras sapatilhas que me davam mais conforto comecei a sentir-me melhor. As dores dos pés começaram a ser menores e lá fui enfrentando a primeira grande subida do dia. Nesta altura comecei a aproximar-me de um grupo de italianos, com os quais fiz muitos quilómetros. Eles tinham um ritmo semelhante ao meu e eram atletas que já conheciam esta prova. Fomos dialogando e começou a existir uma entreajuda. Embora eu nas subidas andasse mais rápido (neste momento só me apetecia subidas) eles nas descidas voltavam a juntar-se a mim.
Depois de vencer aquela primeira subida após os 73 quilómetros fui mantendo um bom ritmo. Agora estava a caminhar para uma nova subida aos 2.645 metros, em Pic Niegre. As descidas nesta fase não eram tão brutais como até aqui e eu fui-me sentindo cada vez melhor. Voltava a focar-me na próxima barreira horária, em Coll Valcivedra, ao quilómetro 116.
O dia voltou a nascer com um sol resplandecente e o calor prometia voltar a fazer-se sentir. Eu nas grandes provas vou sempre utilizando as minhas estratégias, os meus mecanismos de coping. O meu objetivo inicial é sempre chegar a meio da prova. Até aí eu estou a acrescentar quilómetros e, a partir daí, começo numa contagem decrescente, estou a tirar quilómetros. Por isso, quanto mais rápido e melhor chegasse ao quilómetro 85 melhor. Fui gerindo de forma consciente o meu tempo.
Fui enfrentando todos os desníveis com coragem. Iam variando entre os 2.100 e os 2.600 metros de altitude. Aproximava-se a noite e tinha consciência que a segunda noite é sempre muito complicada. Era nesta altura que começava a ser posta à prova a nossa resiliência, a nossa vontade para continuar. Na segunda noite começam a vir os delírios e a linha ténue que separa a realidade das alucinações é cada vez mais permeável. É nestes momentos que se cometem os maiores erros, que nos perdemos com maior facilidade e, por vezes, numa tentativa de querer ir mais longe e mais rápido, os acidentes poderão ser mais frequentes e trazer consequências muito graves. Um acidente aqui poderia implicar a morte.
Corria e caminhava com mais intensidade, sobretudo nas subidas, depois de chegar ao Refugi de L´illa, a 2.485 metros de altitude, um refúgio de montanha perdido no meio do nada. Até lá chegar fui passando por alguns atletas. Alguns caminhavam lentamente, outros dormitavam em cima de pedras. No refúgio, alguns atletas dormitavam nas poucas camas que existiam. Deixei-me estar um pouco sentado, enquanto comia uma sopa e voltava a atestar o camelbak com barras energéticas e enchia os bidons. Ao sair, um elemento da organização pediu-me para que não fosse sozinho e que esperasse um pouco por outro atleta, pois mencionava que o trilho era um pouco perigoso. Lá partimos os dois.
Foi durante a longa descida que comecei a ficar com muito sono e, por breves segundos, sentei-me a descansar um bocado. Tentava concentrar-me e foi neste espaço de tempo que deixei de ver o atleta que seguia comigo. Fui continuando e a certo momento deixei de ver as o atleta que seguia comigo. Fui continuando e a certo momento deixei de ver as marcações. Subia e descia o trilho até à última fita visível, na esperança de voltar ao trilho certo. Nesta altura, começo a questionar-me (delírios) “o que estou aqui a fazer”, “mas afinal o que é que me disseram no último abastecimento para eu fazer”. Tinha uma missão e não era capaz de me lembrar qual era. Começava a pensar em voltar para trás, mas não tinha coragem para voltar a subir tudo novamente em sentido contrário… Até que voltei a ter algum discernimento e decidi esperar por outro atleta, coisa que não demorou muito. Tinha novamente companhia, embora por pouco tempo, pois rapidamente desapareceu no meio da escuridão. Só o via, esporadicamente, ao longe, mas pelo menos tinha encontrado o caminho e estava novamente no trilho.
No próximo abastecimento, em Pas de La Casa, no quilómetro 130, tinha que voltar a enfrentar uma grande subida (2.552 metros) e tinha que voltar a descer (as descidas nesta altura são ainda mais torturantes, dolorosas, penosas). Foi uma descida muito complicada, mesmo complicada. Estava a passar por uma fase de confusão mental, estava com sono e isso tirava-me a sensatez e a capacidade para agir normalmente. Mesmo a chegar aos 130 quilómetros perdi-me um pouco, pois estava a criar imagens mentais que não correspondiam à realidade. Estava a correr em direcção à vila e a imaginar que esta estava cercada por uma rede. Comecei à procura de uma alternativa até que, do nada, surgiu um elemento da organização, que vinha de carro e que me disse o caminho. Voltei a cair na realidade. Quando estava a entrar no abastecimento os primeiros raios de sol rompiam por detrás da montanha.
Estive parado nesta base de vida durante cerca de uma hora. Voltei a trocar de sapatilhas e de meias e, enquanto atestava os bidons, com água e isotónico, aproveitei para comer uma sopa quente e voltar a colocar no camelbak mais umas barras. Neste local ainda tentei dormir mais um pouco pois, enquanto punha o despertador adormeci. Foram apenas 15 a 20 minutos e voltei a despertar. Estava disposto a regressar aos trilhos. Enquanto isso os meus colegas italianos continuavam deitados, mas eu não queria perder mais tempo e sentia-me com forças para continuar. Neste momento começava já a pensar na próxima barreira horária, que ficava a 12 quilómetros, e tinha que voltar a subir aos 2.575 metros de altitude em Pas de La Vaques.
3.º Dia – O dia das emoções
Ao sair, ainda descíamos um pouco para, logo de seguida, começar a subir. Embora os trilhos não fossem muito técnicos exigiam sempre uma grande concentração. A subida foi longa, mas eu estava cada vez com mais força. Pensava sempre que depois tinha de novo uma descida longa. Fui subindo e fui ultrapassando alguns atletas. Só queria encontrar de novo um grupo para me anexar, mas não precisei de muito tempo até que os italianos se voltassem a juntar a mim, já na descida para o quilómetro 142, para Incles. Os pés continuavam sem me dar tréguas. Ia pensando “quando chegar lá baixo só vou ter mais duas grandes subidas”, “escalar” até aos 2.657 metros de altitude de Cabana Sorda e aos 2.719 de Collada Meneres. Durante a descida, colei-me aos italianos, que mantinham um bom ritmo. Eu agora não queria perder este “comboio”. Na chegada a Incles fiquei como que aterrorizado. Quando eu e um italiano chegamos ao controlo a responsável mandou-nos parar. Colocou-me a mão no ombro e eu pensei, por momentos, que o controlo já tinha fechado. MAS NÃO! Para meu alívio, foi só para me dar os parabéns. Para mim ser tirado de prova a esta altura era o maior desalento da minha vida.
Voltei a fazer contas. Estava a conseguir correr e caminhar mais rápido, por isso, ia conseguir chegar a tempo ao próximo controlo. Não queria de maneira nenhuma chegar muito a “queimar” o tempo. A partir daqui fui colocando um empenho cada vez maior. Tinha que me dedicar pois a subida era gigantesca e tinha em mente que, depois de vencer esta, só faltava mais uma subida. Voltei a acompanhar a comitiva italiana e, ao chegar aos 2.752 metros de altitude de Collada Meneres, pensei que voltar a descer ia ser complicado. Antes pelo contrário. Fiz uma descida rápida e, pela primeira vez numa descida, fui ganhando terreno ao restante grupo. Nesta fase do percurso fui encontrando muitos caminheiros, que sempre me davam mais força. Cada vez que passava por um grupo ganhava mais entusiasmo e esta descida correu lindamente até Coms de Jan. Aqui, aproveitei a presença de um podologista e tratei dos pés. A minha acompanhante Esmeralda Melo votou a presentear-me com um Red Bull e estava de novo pronto e cheio de ânimo e entusiasmo. Só faltava ENFRENTAR A ÚLTIMA GRANDE SÚBIDA.
Nesta paragem mais prolongada, o quarteto italiano tinha avançado mais rápido do que eu. Naquele momento estava decidido a fazer o que restava da prova o mais rápido possível. De Coms de Jan foi sempre a subir para voltar novamente aos 2.719 metros de altitude. Os pés deixaram de doer. Sentia-me capaz de fazer os restantes 20 quilómetros sempre a correr. Durante a subida, rapidamente juntei-me aos italianos. Embora ainda faltasse um último ponto de controlo já sentia que ia conseguir terminar esta prova.
Até ao fim foi praticamente sempre a descer. Quando cheguei a Refugi Sorteny estava super empolgado e só parei por breves minutos. Tinha novamente a minha bebida energética de eleição e a Esmeralda estava lá para me dar o impulso final nestes últimos quilómetros. Sentia-me feliz e confiante e fui recuperando alguns lugares, embora isto seja praticamente irrelevante. Não seria mais um lugar à frente ou atrás que iria tirar o mérito a quem termina uma prova desta dimensão.
Estava já a reconhecer as ruas, o casario e os trilhos. Estava a aproximar-me de Ordino, a meta estava à vista, e lá já tinham chegado os portugueses Júlio Costa (22º – 39:45), Pedro Marques (23º – 39:50:40), o Manuel Quelhas (92º – 53:24:16). A dois quilómetros da meta tirei a bandeira nacional que me acompanha em todas as provas internacionais, pois é com muita honra que as termino envergando o nosso maior símbolo nacional.
Ao entrar na zona de meta, e com o pórtico a 50 metros, entro em êxtase. Ouço os aplausos. O speaker grita pelo meu nome e por Portugal: “bravo Augusto, bravo, bravo”. Sou recebido como um Campeão.
Aqui entrava no último estado mental – a glória, a vitória, o ser um campeão. Até aqui tinha penado nos três estados anteriores, durante as 60:44:54 – 170 quilómetros. Na parte inicial da prova, (acontece em todas as ultras com mais de 100 quilómetros), até aos 50 quilómetros, vou passando pelo primeiro estado (eu e um grande número de atletas que eu conheço), o estado da autocrítica e condenação, em que pergunto a mim mesmo: “o que estou aqui a fazer”; “porque é que faço isto”; “estava tão bem em casa num sítio confortável e relaxado”; “não venho a mais nenhuma Ultra”; “para a próxima venho à prova mais curta”; ou desabafo “vou vender as minhas inscrições que tenho para as próximas provas”.
Quando o cansaço e os quilómetros vão sendo mais passo para o segundo estado, que é o pedido de ajuda aos nossos pais, amigos, mulheres, namoradas, vou sussurrando: “minha mãe ajuda-me que eu já não aguento mais”; “mulher porque é que eu me meti nisto” e vou (vamos) sempre em sofrimento. Ao dobrar a barreira dos 100 quilómetros até os descrentes, vão pedindo ajuda a entidades superiores e divinas, com as preces como: “ó meu deus ajuda-me”, “aí Santíssima faz com que isto acabe o mais rápido possível”.
Terminar uma prova com esta dureza, com este nível de exigência é um feito único, pois até ao momento em que cruzo o pórtico, passei pelas mais diversas e atrozes dificuldades. Foram horas e horas em que suor, lágrimas e sangue se transformaram em endorfinas, em adrenalina e em neuro adrenalina e deram lugar a um momento único, a um momento que jamais será esquecido. EU ACREDITEI, EU CONSEGUI”.
Augusto Pinto Oliveira – Paredes Aventura