Micaela Jorge teve uma infância e juventude marcadas por episódios de violência doméstica. Desde que se lembra, a mãe era frequentemente agredida, física e verbalmente, pelo pai. Quando, finalmente, a mãe saiu de casa com os dois filhos, o pai acabou por matá-la a tiro.
A filha, licenciada em Psicologia, pôs agora em livro alguns desses episódios de violência e também a forma como os filhos viram o julgamento do pai. Espera honrar a memória da mãe e ajudar outras vítimas de violência doméstica.
O livro, “História de Vida – Por Ti e Para Ti”, é apresentado hoje na Feira do Livro de Paços de Ferreira.
“Tirou-me a minha mãe e a minha melhor amiga”
Micaela Jorge tem hoje 26 anos. No rosto mantém o sorriso e a serenidade de quem sabe que o passado não pode ser alterado.
Viveu desde cedo o drama da violência doméstica, escondida dentro de portas. “Acontecia desde que me lembro. Era frequente haver agressões físicas e psicológicas, não só com a minha mãe mas também comigo”, recorda a pacense, natural de Frazão. Já mais velha foi muitas vezes um escudo, colocando-se entre a mãe (Laura Andrade) e o pai (Álvaro Dias) para defender a progenitora. Também o irmão mais novo foi vítima de maus-tratos.
Aos 12 anos lembra-se de terem saído de casa com a mãe. E de nunca ter percebido porque é que ela voltou para aquela realidade. “Os familiares e amigos diziam-lhe para sair de casa, mas ela dizia que tinha medo de morrer”, conta Micaela Jorge. Os presságios haviam de confirmar-se em 2009. Depois de ganhar coragem e de abandonar o marido, o homem perseguiu-a e mandou-lhe mensagens ameaçadoras. Acabou por concretizá-las duas semanas depois. Álvaro Dias assassinou a mulher com três tiros e tentou o suicídio. Não conseguiu e acabou por ser detido e condenado pelo tribunal a 23 anos de prisão.
Micaela tinha 19 anos e o irmão 14. “Senti uma revolta muito grande. Foi muito injusto e cobarde o acto que ele teve. Tirou-me a minha mãe e a minha melhor amiga”, lamenta a jovem. Encontraram apoio na família materna. Foram viver com os avós. Tornou-se quase mãe do irmão com quem mantém uma relação muito forte.
Pelo pai, continua a sentir raiva. “Nunca o vou perdoar”, sustenta, dizendo que não foi feita justiça. Se falasse com ele, só tinha uma questão a colocar: “Porque é que nos tiraste a mãe?”.
Quis honrar a mãe e dar um testemunho para ajudar outras vítimas de violência doméstica
Começou a escrever textos sobre o que via e o que sentia aos 16 anos. “Era um refúgio”, garante. Depois de a mãe morrer deixou de o fazer. Mas há cerca de três anos voltou ao papel para escrever o resto da história. No livro “História de Vida – Por Ti e Para Ti” conta alguns episódios de violência e a forma como viveram o julgamento do pai.
“Quero honrar a memória da minha mãe e alertar para a violência doméstica”, salienta Micaela Jorge. “Para mim sempre foi muito difícil ver a minha mãe ser espancada, levar estalos e pontapés. Nos últimos dias, quando me metia à frente, já não sentia dor, o que me custava era vê-la sofrer”, recorda a pacense.
Micaela quis perceber. Licenciou-se em Psicologia. Fez a tese com vítimas de violência doméstica, para tentar perceber a própria história. Todas justificavam permanecer junto do agressor por um motivo: medo. “O medo impede-as de agir. E em 2009 não se falava tanto sobre este assunto. Agora há mais informação”, acredita a jovem.
E porque “dar um testemunho nunca é demais”, a autora quer fazer ver às mulheres que se fecham em casa e que não conseguem falar que podem e devem procurar ajuda, já que há cada vez mais associações e instituições que podem ajudar.
Fala sobre o tema com uma facilidade que não significa que a dor foi ultrapassada. “Ainda hoje isto me magoa, choro muito e acho tudo muito irreal. Mas acho que isto foi uma forma de me libertar”, assume.
O livro é apresentado esta terça-feira, pelas 21h30, na Feira do Livro de Paços de Ferreira e foi editado com o apoio da Câmara Municipal de Paços de Ferreira.