Por vezes precisamos de tempo e espaço para atingirmos o distanciamento necessário dos factos para sobre eles podermos falar.
– És um homem com muito mundo! dizia-nos, há tempos, um amigo de longa data.
Como ele, muitos outros já usaram estas palavras para se referirem a nós, querendo com isso – presumimos – dizer qualquer coisa que nunca entendemos bem o quê. Nem sequer cuidamos de saber se se trata de uma tentativa de elogio ou de um registo cadastral. Pouco interessa para o caso, até porque somos dos que pensam, há muito, que nada do que nos acontece é importante. Seja por acontecer só connosco e, por isso, interessar pouco aos outros, seja por acontecer a todos e, bastaria isso, para ter pouco interesse particular.
Contudo, confessamos que, não raras vezes, olhamos para a expressão como o reconhecimento de uma vida que nos privilegiou com a possibilidade de conhecer e de privar com as pessoas que mais despertaram a nossa curiosidade e admiração. Fosse pela curiosidade banal que nos caracteriza, pela satisfação intelectual, pela descoberta do outro, pela admiração ou por esta vontade indomável que nos chega da certeza de que temos sempre muito a aprender com os outros.
Não é este o momento nem o assunto da crónica. Pelo menos, diretamente.
Esta pandemia fragiliza-nos. Mais ainda quando perdemos os que nos privilegiaram com a sua amizade, que nos acompanharam e confiaram em nós incondicionalmente, dos que acreditaram sempre em nós e nas nossas capacidades e até dos que muitas vezes discordaram de nós, mas nos deram a possibilidade de nos e de os ouvir.
Jorge Malheiro, presidente da câmara de Paredes durante dezassete anos, deixou-nos. Trabalhei com ele. Fui seu adjunto e chefe de gabinete. A partir de uma partilha partidária impossível construímos a mais sólida, insólita e profícua cumplicidade. Começou a crescer no dia em que nos conhecemos. Há mais de três décadas.
Um homem bom. Um autarca exemplar. O melhor. Sobre Jorge Malheiro e a sua obra escrevemos centenas de páginas. Contamos publicá-las. É o mínimo que poderemos fazer.
Joaquim Alves Faria, antifascista dos que o são antes do 25 de abril e pioneiro do cooperativismo de habitação. Um homem de méritos pouco reconhecidos, mas de uma generosidade única. Benemérito do U.S.C.Paredes sempre, mesmo quando não foi aí bem tratado. Se um dia se disser de alguém que salvou o clube só uma pessoa o fez: ele. Mentem, cínica e hipocritamente, todos os outros que reclamaram para si esse estatuto. O “Manifesto pelas Laranjeiras”, que connosco criou e liderou, é o melhor exemplo do que escrevemos.
Companheiro das mais profícuas tertúlias, irmão mais velho e sábio, sempre disposto a moderar ímpetos desnecessários, acompanhou-nos sobretudo nas duas últimas décadas. Com a sua partida nós perdemos mais do que os que não chegaram a privar com ele, mas esses nunca saberão o que perderam.
E o tempo da pandemia levou também Alberto Pereira Leite, homem inteligente e, talvez também por isso, controverso, mas que deixa em aberto um espaço de diálogo e concertação democrática que só ele sabia preencher nesta terra. Aprendemos tanto com Pereira Leite.
Imperdoável seria esquecer, talvez, a personagem mais talentosa que nestes dias também nos deixou. António Mendonça, autor, encenador, realizador, ator e tudo o que mais fosse preciso, cria um vazio na produção artística do concelho. Amador e pro bono sempre. O que ele fez é irrepetível, mas, por isso, inesquecível.
Nem sempre estivemos de acordo, mas nunca nos dividimos pelo que nos separava. Leva o talento que nos faz falta e deixa mais pobre esta terra já de si depauperada.
E correm tristes estes tempos. E partem sempre cedo os que mais admiramos.
E terão partido também outros tantos tão ou mais importantes do que estes e que farão tanta falta a outros como estes a nós. Resta-nos o privilégio que nos legaram por, com eles, termos vivido e convivido.