O ritmo de Deus

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Pouco antes da Semana Santa, estive com alguns alunos do Técnico na última parte de uma peregrinação a Fátima. Foi uma combinação de amigos, que convidaram outros amigos e passaram palavra a outros. Cerca de 60 estudantes partiram da faculdade às 5h00 da manhã de quarta-feira 14 de Março, debaixo de um aguaceiro violento. Ao fim do primeiro dia, tinham percorrido 50 km, por vezes através de campos inundados pelas cheias, como documentavam as fotografias épicas que iam mandando. Ao entardecer de sexta-feira, alguns juntámo-nos a eles em Pernes, para os acompanhar nos trajectos de sábado e de Domingo, pela zona da serra.

Duvido que nas peregrinações das outras faculdades haja tanta matemática e física e tanta conversa de engenheiro e oração de engenheiro. A certa altura, ouvi a seguinte descrição, no dialecto da engenharia:

Jesus ressuscitou no primeiro dia depois do sábado. Nesse Domingo, apareceu às mulheres, aos discípulos de Emaús, aos Apóstolos. Depois, na segunda-feira, nada; na terça-feira, nada; na quarta-feira, nada; na quinta-feira, nada; na sexta-feira, nada; no sábado, nada. Até que, passados 8 dias, como diz o Evangelho de S. João, Jesus apareceu novamente a todos, já com o Apóstolo Tomé entre eles. O ritmo da Igreja passou a ser este: nada na segunda-feira; nada na terça-feira, nem na quarta, nem na quinta, nem na sexta, nem no sábado; até ao dia especial, o Domingo. Jesus ressuscitou num Domingo, apareceu no Domingo seguinte, enviou o Espírito Santo como fogo e vento num Domingo.

A Igreja captou rapidamente a sequência, ou «termo geral da sucessão», como dizem os matemáticos. Em informática, chamam a isto reconhecimento de configurações («pattern recognition»). Neste caso, a regra era fácil de deduzir e começou imediatamente a ser posta em prática. Registam os Actos dos Apóstolos: «no primeiro dia da semana, tendo-nos reunido para a fracção do pão (a Eucaristia)…» (Act 20,7); numa carta aos de Corinto: «no primeiro dia da semana, cada um de vós ponha de parte o que tiver podido poupar, para que não se faça a colecta quando eu chegar…» (I Cor 16, 2). Em pouco tempo, já não se dizia, o «dia depois do sábado», ou o «primeiro dia da semana», mas explicitamente o «dia do Senhor». O primeiro capítulo do livro do Apocalipse situa assim a visão de João: «Caí em êxtase no dia do Senhor, e ouvi por trás de mim uma voz forte, como de trombeta…» (Ap 1, 10).

O Concílio Vaticano II confirma esta engenharia: «por tradição apostólica, que nasceu no próprio dia da Ressurreição de Cristo, a Igreja celebra o mistério pascal todos os 8 dias, no dia que justamente se denomina do Senhor, ou Domingo» (Const. «Sacrosanctum Concilium», 106).

Bento XVI comenta no seu livro «Jesus de Nazaré» (vol. 2, cap. 9, 2.1-3) que, em face da importância do sábado na tradição do Povo Eleito, é evidente que só um acontecimento de um poder impressionante podia provocar a renúncia ao sábado e a sua substituição pelo primeiro dia da semana. «Só um acontecimento que tivesse sido gravado nas almas com uma força excepcionalmente poderosa podia suscitar uma mudança tão central na cultura religiosa da semana. Não bastariam simples especulações teológicas. Para mim, a celebração do Dia do Senhor, que desde o início caracteriza a comunidade cristã, é uma das provas mais fortes de que em tal dia sucedeu algo extraordinário: a descoberta do sepulcro vazio e o encontro com o Senhor ressuscitado».

Cristo deixou à Igreja o poder misterioso e extraordinário de actuar à maneira de Deus –  «tudo o que ligardes sobre a terra, será ligado no céu; e tudo o que desligardes sobre a terra, será desligado no céu» (Mt 18, 18) – mas raríssimas vezes a Igreja usou tal poder para impor leis. Um desses casos muito especiais é, desde há muitos séculos, a obrigação de assistir à Missa ao Domingo, que o actual Código de Direito Canónico mantém (cânone 1247).

Hoje, primeiro Domingo depois da Páscoa, em que se recorda o segundo dia em que Cristo apareceu, 8 dias depois da Ressurreição, começa o ritmo dominical de Deus.

Participar na Eucaristia num dia de semana tem o seu encanto, porque podemos dizer: «estou aqui, porque quis!». No Domingo, é diferente: «a iniciativa não foi minha, estou aqui porque a Igreja mandou». O que também tem o seu mérito porque, de algum modo, ao Domingo, representamos a Igreja inteira, fiel ao ritmo de Deus.