“O que é que eu vou fazer? Vai ser até quando Deus quiser que eu não consigo abandoná-los”

Aurora Cunha cuida dos pais a tempo inteiro, há dois anos, em Lousada. Confessa que está emocionalmente exausta e defende que é preciso mais apoio psicológico aos cuidadores informais

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Lado a lado, deitados em duas camas, estão José Silva, de 84 anos, e Maria Costa, de 79. São casados há mais de 50 anos e têm sete filhos. A televisão está ligada, mas pouco ou nada lhe ligam. Uma janela ilumina o quarto. A filha tenta que não passem ali todo o dia, ‘obriga-os’ a levantar para irem fazer as refeições a outro espaço. Toma conta deles 24 horas por dia.

“Ela está aqui a olhar por nós. Se temos de ter alguém, temos a filha. Ela cuida bem de nós. Não queremos ir para o lar nem para o centro de dia. Aqui em casa é melhor. Não há nada como estar em casa”, defende José. “E se eu não puder, como é que vai ser, ficam aqui sozinhos?”, pergunta Aurora Machado, a terceira filha mais velha. “Quando sairmos daqui é para o cemitério”, sentencia a mãe.

A conversa não é nova. Repete-se. Mas os pais não mudam de ideias e a filha não os quis forçar a ir para uma instituição ou separá-los. “O que é que eu vou fazer? Vai ser até quando Deus quiser que eu não consigo abandoná-los”, sustenta.

Aurora Machado, de 54 anos, já tomava conta dos pais há oito anos, mas, há dois, deixou o emprego de gaspeadeira para olhar por eles “a tempo inteiro”. Confessa-se exausta emocionalmente, já que a função é cansativa e pouco lhe permite descansar. “Só peço a Deus saúde para tomar conta deles. É preciso ter muito amor e dá muito trabalho”, diz.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

“A maioria destes cuidadores vê-se numa situação de vulnerabilidade psicológica, emocional e social”

Cuidar de alguém (dependente) causa desgaste, físico e emocional, e deixa marcas. Há níveis elevados de sofrimento psicológico, baixos níveis de bem-estar e sintomatologia depressiva e ansiosa em grande parte dos cuidadores informais.

As conclusões são de um inquérito, divulgado recentemente, sobre a saúde mental dos cuidadores informais em Portugal, que revela que mais de 83% já se sentiu em estado de burnout/exaustão emocional. A iniciativa, da Merck, com o apoio do Movimento Cuidar dos Cuidadores Informais, que envolveu 1183 pessoas, conclui ainda que 52% dos cuidadores informais sentem falta de apoio psicológico.

“A maioria destes cuidadores vê-se numa situação de vulnerabilidade psicológica, emocional e social. De facto, 63,7% sentem dificuldade em estar à vontade ou descontraídos, 47,7% não são capazes de rir e/ou ver o lado positivo como faziam antes, 45,7% sentem-se muitas vezes ansiosos/contraídos e 37,4% não têm cuidado com o aspecto físico como deviam”, mostram os resultados.

“Apesar de a grande maioria dos cuidadores reconhecerem a necessidade de apoio psicológico, são poucos os que realmente procuram e usufruem deste apoio extra”: 77,9% em algum momento sentiu necessidade de apoio psicológico, 69,7% gostava de ter apoio psicológico profissional, e 42,1%, em algum momento, procurou apoio psicológico.

Quase 79% dos inquiridos reconhece que o estado de saúde mental influencia o desempenho do papel de cuidador informal.

O inquérito traça ainda um retrato dos cuidadores em Portugal. 84,7% são do sexo feminino e a maioria tem entre os 45 e os 64 anos.  

“Tem de se estar todo o dia à beira deles, não se pode sair. É um trabalho 24 horas por dia”

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

Há oito anos, Aurora Machado, de Cernadelo, Lousada, ainda trabalhava, mas andava “sempre a correr” para conseguir vir dar as refeições aos pais. Isso tornou-se “muito cansativo”. Por isso, acabou por decidir, em conjunto com os irmãos, deixar o emprego e passar a tomar conta deles a tempo inteiro.

Ela “não era a favor de pô-los num lar”, sobretudo porque não é essa a vontade deles. “O meu pai chorava e dizia que não queria ir para um lar. Eu prometi”, conta.

Desde há dois anos a esta parte que os seus dias e noites são dedicados aos progenitores. E não são dias fáceis. É preciso estar sempre por perto. Usam fralda, são diabéticos e tomam insulina quatro vezes por dia. A mãe faz oxigénio. Têm princípios de Alzheimer, apesar de ainda “estarem maioritariamente conscientes”, há outros dias em que isso não acontece e em que “rasgam fraldas e tiram roupa, caem…”. “Às vezes esquecem-se que beberam e já estão a pedir outra vez. Outras vezes fazem birra, não falam comigo, não querem comer”, relata a filha e cuidadora. “Devido à doença, a mãe é muito teimosa, e, às vezes, atirava-se para o chão”, dá ainda como exemplo.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

“Tem de se estar todo o dia à beira deles, não se pode sair. É um trabalho 24 horas por dia, muito cansativo. É preciso ter muito amor. Passamos muitas noites em branco e, muitas vezes, vou para o hospital com eles e nem tenho tempo para os meus filhos, netos e marido”, reconhece Aurora Machado, que tem três filhos, já adultos, e duas netas. “Os filhos costumam vir jantar comigo duas vezes por semana, mas acontece deixá-los a conversar e vir para aqui, pôr as fraldas, dar oxigénio, medicação e lanche antes de [os pais] dormirem”, explica.

Mora na casa ao lado, mas o ouvido está sempre atento e tem uma aplicação no telemóvel para monitorizar a noite dos pais. Com regularidade, tem de se levantar para vir resolver questões ou ver como estão. “Há noites em que saem da cama, fazem asneiras, vêm bater à porta. Durmo muito mal e, às vezes, até luto com o sono” para estar a vigiá-los, admite a lousadense. Acaba por não descansar o suficiente.

“Não se tem vida nenhuma, nunca pensei que fosse tão difícil”

De tempos em tempos, ao fim-de-semana, recebe a ajuda de um dos irmãos ou de uma cunhada para ter algumas horas livres, mas só durante o dia.

“Não se tem vida nenhuma, nunca pensei que fosse tão difícil. Mas ninguém quer olhar por eles, mesmo a pagar não se arranja. Já pensei desistir muitas vezes. Fico sem dormir porque estou a fazer sofrer os meus filhos e o meu marido. Mas também não consigo pensar que eles estariam num lar a chorar e a sofrer”, resume a mulher.  

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

Foi quando foi pedir apoio para fraldas, na Câmara de Lousada, que soube de um projecto de ajuda aos cuidadores informais, que permite a alguém vir substitui-la “um dia” por semana e ter acesso a apoio psicológico, o Lousada Cuida, do Centro de Apoio Cuidador Informal  Lousada, da Santa Casa da Misericórdia e do município. “Eu aceitei logo. É o dia em que vou buscar medicações e fazer compras e, às vezes, se sobra uma hora, conversar com alguém e apanhar e estender roupa. A pessoa vem às 9h00 e vai embora às 17h00. Eu, às vezes, já tenho o pequeno-almoço dado quando chega. É uma boa ajuda e eles gostam muito dela. Mas é só um dia”, aponta Aurora Machado.

Também tem acesso ao apoio psicológico que tem ajudado. “Tem-me feito muito bem. É pena não ser mais vezes. Há dias em que ando mesmo muito em baixo e, quando venho de lá, venho com outra maneira de ver a vida”, assume a lousadense, que toma medicação para a depressão e para dormir.

Sente-se exausta emocionalmente e “abandonada”, confirma. “Sinto falta de apoio. E tenho muito medo que isto vá piorar. Tenho medo de eu própria ficar doente e não conseguir tomar conta deles”, diz a cuidadora. Mas, como se falasse com ela própria em voz alta, acrescenta: “O que é que eu vou fazer? Vai ser até quando Deus quiser que eu não consigo abandoná-los”.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

É que o sentimento de gratidão para com os pais é muito grande. “Os pais lutam tanto pelos filhos e depois não se toma conta deles? Os meus pais criaram-nos com amor e carinho e todos temos casas graças a eles. Investiram sempre nos filhos”, afirma. Teme que se forem para um lar percam a vontade de viver, como já viu acontecer noutros casos. “Nunca ia ficar sossegada, ia ficar com peso na consciência”, admite a mulher de Lousada.

Uma história que a mãe sempre lhe contou também pesa na decisão. “A minha filha teve uma doença muito grande. Pôs-se pequenina e magrinha. Eu dizia ‘enquanto há vida, há esperança e Deus não ma vai levar’. Ia todos os dias com ela de Cernadelo a Lousada a pé, para ir ao médico”, narra Maria Costa, na cama. A ‘menina’, hoje mulher, vingou. “Ela fala, muitas vezes, nisso. Emociona-me muito, porque nunca desistiu de mim. Parece quase que já estava a lutar por alguém que havia de tomar conta dela um dia”, ilustra Aurora Machado.