O preço da colonização partidária

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Há poucos dias, terminei a leitura de um livro-entrevista com o ex-Presidente da República António Ramalho Eanes. A certa altura, uma afirmação sua prendeu-me a atenção: “Os partidos do ‘arco do poder’ têm colonizado, partidariamente, a administração pública do Estado e a administração regional e local, com a ocupação partidária dos lugares de direção, quando a administração pública deveria, por razões óbvias, ter um estatuto de neutralidade.”

Uma reflexão certeira e que, por mais que nos custe admitir, encontra eco na realidade política do país. Porque o que Eanes denuncia não é apenas um problema ético ou moral – é um problema estrutural que tem consequências diretas no funcionamento das instituições e, pior ainda, na vida dos cidadãos. A deserção dos mais competentes, a desmobilização de quadros, o confronto e a instabilidade interna por motivos partidários, a descaracterização da burocracia virtuosa – tudo isto são efeitos diretos desta colonização do Estado.

Na semana passada, assistimos a mais um episódio desta lógica de ocupação: a exoneração do presidente do Conselho de Administração da Unidade Local de Saúde (ULS) do Tâmega e Sousa, Henrique Capelas, ainda sem ter cumprido metade do mandato.

E qual foi o motivo? Politicamente, sabe-se que o presidente da Câmara de Amarante, José Luís Gaspar, está a terminar o seu último mandato e precisa de um novo destino. Aparentemente, a solução encontrada foi colocá-lo à frente da administração de um hospital.

Que se espera que faça um bom mandato? Sem dúvida. Que ninguém coloca em causa as suas capacidades? Certamente. Mas que chega ao cargo por um critério que não é o da competência e do mérito, mas sim da fidelidade partidária e das necessidades estratégicas do partido? Também é verdade.

O timing desta decisão não podia ser mais revelador. Pela primeira vez em muitos anos, este Inverno o serviço de urgência do Hospital Padre Américo não foi notícia pelos piores motivos. Não ouvimos falar de macas retidas por falta de camas, de ambulâncias em fila à porta do hospital ou de doentes internados em corredores. Coincidência ou não, é neste momento que o presidente do Conselho de Administração é afastado.

Mas o caso da ULS do Tâmega e Sousa não é isolado. Para resolver um problema autárquico no PSD de Penafiel, o partido indicou Alberto Santos para secretário de Estado da Cultura. Se Alberto Santos tem competência para o cargo? Certamente. Mas o timing da escolha não foi, com certeza, ditado pelo mérito. Foi ditado pela necessidade política de encontrar uma solução para um conflito interno no partido, um conflito que se arrastava há meses entre a concelhia e o atual presidente da Câmara de Penafiel.

O mesmo aconteceu com Marco Martins, ex-presidente da Câmara de Gondomar, que agora assume a presidência dos Transportes Metropolitanos do Porto (TMP), uma empresa fundamental para a gestão da mobilidade na região. Marco Martins tem algum histórico de gestão na área da mobilidade? Não. Mas isso nunca foi um critério decisivo em nomeações deste género.

E é exatamente disto que falava Ramalho Eanes quando dizia que “os critérios do saber, da competência e do mérito foram, por vezes, substituídos pela fidelidade partidária, solidariedades, e interesses vários e malsãos.”

A política tornou-se, demasiadas vezes, uma carreira onde os destinos dos seus protagonistas não são decididos pela experiência, mas pelo jogo de cadeiras dos partidos. Um jogo onde o interesse público passa para segundo plano e onde a governança se tornou refém das estratégias de poder.

Os portugueses há muito que perceberam este mecanismo e a prova disso é o nível de abstenção nas eleições, a desconfiança generalizada nas instituições e o crescimento de discursos populistas que se alimentam deste descrédito.

Enquanto o Estado continuar a ser visto como um prémio de carreira para os políticos que chegam ao fim de um mandato e precisam de um novo cargo, em vez de um espaço de competência e serviço público, vamos continuar a pagar um preço alto – um preço que não é político, mas sim social.

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