As palavras são sentidas por Joaquim Martinho, mas saem da boca de Maria de Lurdes, a mulher que acompanha há uma vida o antigo professor de eletrotécnia. Há cerca de 10 anos, o casal caiu num buraco negro, quando o marido foi diagnosticado com Esclerose Lateral Amiotrófica, com uma sobrevivência média prevista não superior a cinco anos. A ELA é uma doença neurológica degenerativa rara, que evolui de forma progressiva, ou seja, os neurónios motores, que conduzem a informação do cérebro aos músculos vão enfraquecendo, até morrerem. Como consequência, os pacientes vão perdendo a capacidade de locomoção, a fala, assim como o mastigar ou o engolir. Aos poucos, o corpo vai-se apagando.
Na altura deste diagnóstico, decorria a campanha internacional de solidariedade contra esta sentença. Cristiano Ronaldo tinha aderido a uma onda de solidariedade, que envolveu ainda Beyoncé, Jennifer Lopez e até Barack Obama, onde os participantes despejavam um balde de água gelada sobre si e desafiavam três pessoas a fazerem o mesmo nas horas seguintes – quem não cumprisse, tinha que fazer uma doação à Associação de Esclerose Lateral Amiotrófica que se debruça sobre esta doença neurodegenerativa, que afecta cerca de 200 mil pessoas em todo o mundo e entre 1000 a 1200 doentes em Portugal, e que também é conhecida como “doença de Lou Gehrig”.
Voltando ao banho de água gelada, foi esta a sensação que este casal teve aquando o diagnóstico. Depois, os dias vão passando e a informação atropela-se. Após o choque, “vem a revolta, seguida da indignação e, por fim, a aceitação”, contou Maria de Ludes, ao VERDADEIRO OLHAR. E foi quando chegaram a esta última etapa que Joaquim Martinho juntou todas as força e resolveu escrever um conto, algo que já tinha intenção de fazer quando se reformasse. Como esta fase da vida foi antecipada, o antigo professor, que “já tinha concretizado dois dos três sonhos, “plantou uma árvore e teve dois filhos”, “começou a escrever”. Era uma forma de também conseguir “minimizar as dores que sentia”, explica a mulher.
Mas o que seria um conto ganhou vida, voou para outra dimensão e transformou-se num romance que fala de um casal de trás-os-montes que abriu um restaurante no Porto. Mas, todas as semanas fazem a viagem de comboio, entre São Bento e o Pocinho, para trazerem os produtos da terra, como enchidos, folar e tantas outras iguarias únicas da região.
Preso na cadeira, Joaquim Martinho também viaja com as suas personagens e o corpo deixa de ser uma prisão, porque a escrita deu-lhe a chave da cela onde, diariamente, escapa para uma liberdade que o mantém vivo e veloz. E assim vai contrariando o diagnóstico de uma doença que mantém as capacidades cognitivas dos doentes intactas. O pensamento do antigo professor mantém-se livre, mas deixa de estar aprisionado dentro de um corpo que se vai calando.
Maria de Lurdes conta que as palavras saem da cabeça do marido a uma velocidade estonteante, mas a dificuldade está em pô-las a habitar nas páginas em branco. O marido escreve com um dedo e, às vezes, “uma palavra é escrita quatro a cinco vezes”. Mas “ele nunca desiste”, diz orgulhosa, debitando um conjunto de adjetivos que descrevem o seu companheiro como “um apaixonado pela vida e um romântico”.
Ao ouvi-la vamos percebendo que esta professora também é apaixonada por tudo que a rodeia e, aquando o diagnóstico de ELA, teve que deixar para trás a profissão para se tornar cuidadora. Mas desempenha este papel com amor, o sentimento que a uniu a Joaquim há quase 50 anos. Eram os dois de Paço de Sousa e Maria de Lurdes era amiga das irmãs do professor que, na altura, andava pela Marinha. Um dia, já depois do 25 de abril de 74, cruzaram-se “numa viagem de camioneta” para Penafiel, onde lhe anuiu licença para se sentar ao seu lado. Ambos carregavam nas mãos um livro de filosofia. E Descartes foi o desbloqueador de conversa. Quando chegaram ao mesmo destino, Paço de Sousa, perceberam que seria “para a vida toda”.
Há muitos anos atrás, Maria de Lurdes carregou outras dores, um cancro de mama. Mas nada a fez perder o brilho no olhar e o sorriso. Sabe que o que sente pelo marido nunca vai desaparecer, nem quando ambos deixarem a terra. “Já disse aos meus filhos que quero ser cremada. Vamos os dois para o mar, onde pertencemos, porque o Joaquim é do signo peixes e eu sou aquário. E vou atrás dele, onde ele estiver para ficarmos juntos”, vaticinou ao VERDADEIRO OLHAR.
O cientista Stephen Hawking, que assumiu a esclerose lateral amiotrófica aos 21 anos, sobreviveu até aos 76, desafiando os piores prognósticos dos médicos que lhe davam poucos anos de vida. Joaquim Martinho pode transformar-se noutro teorema da singularidade e baralhar as contas à doença. Para já, Maria de Lurdes sabe que, no dia 7 de julho, aquando a apresentação do “Comboio Rápido”, o marido vai ser recebido numa sala repleta de pessoas, onde vão ecoar os aplausos da família, dos amigos e antigos alunos. Vai estar “rodeado de amor” para se carregar de força e energia para, quem sabe, contrariar todas as teorias e resistir, muitos mais anos, à erosão do corpo.