O relatório sobre os abusos sexuais da Igreja em Portugal, divulgado este mês, tem defeitos, mas pensemos também como ele pode ser útil.
O estudo era, à partida, parcial, mais por culpa da encomenda do que da comissão que o elaborou. Por que não se aplica o mesmo formulário a toda a sociedade? Por que só interessam os abusos ocorridos na Igreja?
Pesquisar os crimes da Igreja —apenas da Igreja—, ignorando todo o resto da sociedade, produziu uma distorção grosseira da realidade.
Os autores do relatório recolheram num formulário anónimo acusações à Igreja e fizeram-se porta-vozes do total. É impossível defender a Igreja desta avalanche, porque não se identifica o agressor, nem a vítima, nem quem faz a acusação.
Passou-me pela cabeça pedir a quem decidiu divulgar um relatório destes, exclusivamente sobre a Igreja, que promovesse um formulário idêntico acerca da sua família: tem a certeza de que ninguém a acusaria de pedofilia? Como defenderia a honra dos avós, ou bisavós, falecidos há 70 anos? Estaria disposto a que essa estatística aparecesse nas primeiras páginas dos jornais?
Esta divulgação de crimes infringe o princípio elementar de que qualquer acusação deve ser concreta, e provada com provas concretas, de modo que o acusado possa demonstrar a sua inocência, se for o caso. Achar que uma acusação contra a Igreja é, em princípio, fundada é regredir muitos séculos de desenvolvimento jurídico.
Um formulário anónimo, apenas para investigação, não para ser divulgado, poderia ter sido um ponto de partida útil para descobrir abusos até agora desconhecidos. Nesse caso, não era importante que se cingisse a uma entidade específica. Infelizmente, não se fez a investigação e divulgaram-se umas respostas anónimas relativas apenas à Igreja católica portuguesa.
A forma de apresentar os números agravou a acusação, ao englobar no mesmo conceito estatístico insinuações inconvenientes e comportamentos pedófilos mais graves. Isso também não seria importante se o relatório fosse confidencial, mas empolou o seu impacto negativo ao gerar confusão na opinião pública.
Já se esperava que o relatório fosse aproveitado por alguns meios de comunicação para atribuir à própria Igreja a culpa dos pecados de alguns indivíduos. Curiosamente, ninguém atribui os crimes individuais aos partidos políticos, aos clubes desportivos, às autarquias, etc. A acusação, implicitamente transmitida, de que a Igreja é um antro de maldade, onde se fomentam crimes, é profundamente injusta.
Algumas deselegâncias eram escusadas. Por exemplo, o coordenador, Pedro Strecht, chegou ao ponto de promover um monumento em memória das vítimas da Igreja católica!
O relatório erra ao relacionar o celibato com a pedofilia e ao sugerir que os confessores quebrem o sigilo da Confissão. Quebrar o sigilo de Confissão seria um crime repugnante. Se existe uma reserva própria acerca do que se ouve privadamente, ou numa situação profissional, quanto mais em relação ao que se ouve na Confissão!
A comissão também falha ao negar a correlação entre homossexualidade e pedofilia, mesmo que muitas pessoas com tendência homossexual nunca tenham abusado de menores.
Em suma, como o relatório é superficial —a ponto de produzir uma difamação generalizada— e unilateral —como se só interessassem os abusos dos católicos— ajuda pouco.
A não ser que…
— A não ser que este alvoroço encoraje os bispos a pôr na ordem algum padre e catequista que deturpa a doutrina e vive escandalosamente, mesmo que não abuse de menores. A não ser que se compreenda que é melhor tomar medidas enérgicas do que arrastar situações erradas.
— A não ser que este escarcéu seja ocasião para todos nós rezarmos e crescermos em sentido de responsabilidade, mais alertados para a gravidade dos abusos, cuidando activamente de todos, em particular de quem viveu experiências traumáticas. E reconhecendo o papel dos psicólogos e psiquiatras que ajudam as pessoas com tendência homossexual.
Se o relatório tiver estes efeitos, confirma-se que «Deus escreve direito por linhas tortas», por muito torcidinhas que elas sejam.