No comboio regional

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A cadência do comboio regional, a caminho de Vale de Santarém, agarra-me a imaginação e desato a rir. Um grupo de estudantes do Técnico decidiu ir a pé a Fátima. Lançaram o convite nas redes sociais e tiveram de fechar as inscrições pouco depois, quando reuniram uma centena de candidatos. Poderiam ir mais, a dificuldade é que iam dormir no chão de pavilhões desportivos gentilmente cedidos e essas áreas são limitadas. Só tinham espaço para uma centena de pessoas, supondo que as mochilas se arrumassem bem.

No comboio regional, rodeado de estudantes de engenharia dispostos a vários dias de caminhada e de oração lembrei-me de Louis Pasteur, também num comboio, em 1892. Pasteur aproveitou a viagem para rezar o terço e um estudante achou por bem actualizá-lo, «porque a ciência descartou essas devoções»:

– De que ciência está a falar? Explique-me.

– Poderia dar-lhe inúmeros livros científicos sobre o assunto!… – respondeu o estudante.

– Ficar-lhe-ia muito grato. – disse Pasteur, entregando-lhe o cartão de visita – Pode enviar-me os livros para esta morada.

O rapaz não estava à espera de ler no cartão: «Louis Pasteur, Directeur de l’Institut de Recherche Scientifique, Paris». O tal ignorante que rezava o terço era Louis Pasteur, o cientista célebre, químico, pioneiro da microbiologia e inventor da vacina contra a raiva.

Algumas pessoas acham que a vaga impressão de que uma opinião é moderna chega para resolver qualquer assunto. Geralmente, não chegaram a ler um único livro sério sobre o tema, nem estão a par dos argumentos que defendem um ponto de vista ou o questionam, contentam-se com o conforto generalizado de uma massa anónima, supostamente evoluída. Esta abordagem expedita justifica-se em relação a assuntos pouco relevantes – nem haveria tempo para examinar cuidadosamente todas as questões do dia-a-dia! –, mas os temas decisivos exigem outro cuidado. Se queremos ser sérios, a impressão de que outros já pensaram num assunto é só um ponto de partida, até porque resta saber se essas pessoas tidas por evoluídas são, de facto, competentes na matéria. Os boatos formam-se porque as primeiras impressões enganam terrivelmente. Alguém disse. Li algures. Ouvi dizer. E o erro infiltra-se como lugar-comum que dispensa confirmação. Se não temos cuidado, uma investigação séria é afogada por uma profusão de pequenos «tweets» atrevidos, a humildade de uma informação correcta cede ante a agressividade de uma ideologia banal.

No comboio regional, cheio de alguns dos melhores estudantes da Universidade portuguesa, lembrei-me de Louis Pasteur e desatei a rir. Há quem pense que a Universidade afasta de Deus e em particular a ciência. Não chegaram a ler algo significativo, mas disseram-lhes que era assim. Inclusivamente, disseram-lhes que «todos» sabem que é assim.

Antes de confiar em boatos, é preferível falar com quem leu livros e estudou serenamente o assunto. Aquela centena de estudantes do Técnico preferiu esse método e não se deu mal. No caminho, cruzaram-se com peregrinações de estudantes da Nova, do ISCTE, do ISCSP, do S. Tomás.

Suponho que é preciso rever o boato de que Deus não existe e de que os melhores alunos da Universidade não pensam no assunto. E de que todos sabem que é assim.