«Não se deixem destruir!»

0

Quase todos os países do mundo acabaram por aderir à reforma do calendário efectuada pelo Papa Gregório XIII no final do século XVI, mas os cristãos ortodoxos marcam a sua oposição a Roma continuando a seguir o calendário anterior. Por esse motivo, a maior parte dos países celebraram a Páscoa há duas semanas, mas as igrejas ortodoxas só a celebraram no Domingo passado.

Nesse dia da Páscoa ortodoxa, tão importante para o povo russo e para boa parte dos ucranianos, o Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenskiy, difundiu uma mensagem em vídeo dirigida aos seus compatriotas:

— «Os nossos corações transbordam de uma raiva enorme, as nossas almas transbordam de um ódio intenso pelos ocupantes e por tudo o que eles fizeram. Não deixem que a raiva nos destrua por dentro! Transformem isso em realizações por fora, transformem isso numa força generosa para derrotar os poderes do mal».

A ideia é admirável, especialmente aquela frase «Não deixem que a raiva nos destrua por dentro!».

De facto, uma bomba pode ferir e até matar, mas a aversão aos outros corrói por dentro e destrói a própria pessoa. Poucos líderes mundiais têm a capacidade de perceber o perigo do ódio —algumas ideologias até o cultivam— e, no entanto, provoca desastres mais graves que uma bomba nuclear. Zelenskiy, numa circunstância tão propícia a outras preocupações, compreendeu que uma sociedade justa não se funda na agressividade.

O olhar de Deus está cheio de ternura e de misericórdia, mas nós, confrontados com o mal, facilmente cultivamos sentimentos de repugnância pelos outros. À imitação de Deus, uma das escandalosas novidades cristãs foi amar todos os homens, até os inimigos! Ao princípio, muitos pagãos consideravam essa atitude um contra-senso, mas, depois, foi este olhar novo que os desarmou, porque lhes manifestava um sinal característico da grandeza de Deus. Os mártires morriam sem assomo de ódio, nem sequer com estoicismo heróico, morriam rezando pelos que os matavam. E, com essa oração, realizaram a maior revolução de sempre.

A sociedade antiga acreditava na violência, no dinheiro e em todos os poderes deste mundo. Os cristãos enfrentaram-na com a arma oposta e, inesperadamente, a fragilidade venceu o orgulho, a bondade destruiu o mal, com uma vitória que parece milagre.

Hoje em dia, não faltam os que continuam agarrados aos critérios do paganismo antigo, mas eles próprios se surpreenderão por a coragem dos mais fracos os conseguir vencer.

É fácil sucumbir perante a insídia do mal, em qualquer das suas formas. Rejeitamos a injustiça e sentimo-nos com direito a caluniar os que a praticam; não apreciamos alguém e parece-nos lógico desprezá-lo; sofremos injúrias e queremos vingança; até o sucesso alheio alimenta a inveja. A sedução subtil do mal consiste em que a pessoa, julgando que tem bons motivos, se deixa destruir por dentro, pelo ódio. Por isso tem muita razão o Presidente Zelenskiy ao apelar aos ucranianos: «Não deixem que a raiva nos destrua por dentro»!

O veneno do ódio pode infiltrar-se em qualquer um de nós. Até alguns, que lutaram nobremente para defender a dignidade humana, manchada pelos crimes do aborto, da eutanásia, etc., sofreram tanta injustiça que deixaram entrar um pequenino rancor, sedentos de desforra… É tão difícil manter o coração puro dos afectos desordenados!

A ideologia mais caracteristicamente baseada no ódio é o marxismo. Karl Marx classificava como constatação científica que o ódio era o motor da história e que, nesse sentido, o progresso seria o exasperar da raiva entre os homens, até se matarem. No dia em que uns conseguissem esmagar completamente os seus adversários, até nenhum destes ficar vivo, de repente, atingiriam uma satisfação indescritível e, junto com essa efervescência de prazer, a paz e todos os deleites. Nada disto é verdade, muito menos é uma lei científica, ainda que às vezes o ódio pareça omnipotente. Nunca é. Pode matar, pode roubar, pode destruir. No entanto, Jesus garantiu: «Não tenhais medo daqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma!» (Mt 10, 28; cf. Lc 12, 4).

Oxalá os ucranianos consigam defender-se dos russos sem deixar que a raiva os destrua por dentro. E que o mundo ajude os ucranianos a defender-se e aprenda deles a não se deixar envenenar pelo ódio.