Carla Soares tinha 21 anos quando sentiu os primeiros sintomas de uma doença que, estava longe de imaginar, a acompanharia a vida toda. A natural de Sobreira, Paredes, hoje com 30 anos, foi diagnosticada com Crohn, uma doença inflamatória do intestino que a obrigou a abdicar de vários sonhos, entre eles o de ser socorrista da Cruz Vermelha.

Nos últimos anos passou momentos difíceis. Fez uma cirurgia para retirar o intestino grosso, foi ostomizada e vive agora com um saco externo para onde são direccionadas as fezes. Já esteve incapacitada várias vezes e já usou fraldas 24 sobre 24 horas, mas não desistiu. Hoje vive pela filha, com cinco anos, e para ajudar outros doentes a ultrapassar as dificuldades e os tabus.

Esta quarta-feira, entre as 7h00 e as 16h00, Carla Soares estará ao lado das signatárias de uma petição com cerca de 11 mil assinaturas que reivindica medidas para melhorar a vida dos doentes que são portadores de Crohn ou Colite Ulcerosa, duas das principais doenças inflamatórias do intestino, que afectam cerca de 20 mil portugueses. Vão estar em frente à Assembleia da República, juntamente com outros doentes e familiares, a pedir o debate do documento, que foi entregue há quase um ano.

Vera Gomes, uma das promotoras da petição, natural do Vale do Sousa, defende que a saúde não se compadece de burocracias e pede mais celeridade.

“Em Outubro de 2017 fiquei completamente incapacitada. Para ir do quarto à casa de banho tinha que usar fralda”

Um em cada 500 portugueses tem uma doença inflamatória do intestino, doenças que não têm cura e que provocam períodos incapacitantes ao longo de toda a vida. Carla Soares é um desses doentes.

A jovem de Paredes vivia para ajudar os outros. Era socorrista da Cruz Vermelha Portuguesa, delegação da Sobreira, como funcionária e ainda dedicava horas ao voluntariado. Mas tudo mudou quando descobriu a doença, por volta dos 21 anos. “Era uma jovem normal e com muitos sonhos. Ainda hoje me chamam ‘Carla da Cruz Vermelha’. Era uma voluntária a 100%. Fazia de tudo, desde o socorro, à participação nas actividades para a juventude e a acção social. O trabalho e o voluntariado preenchiam-me e eram gratificantes”, lembra Carla Soares.

Até que surgiram os sintomas. “Comecei a sentir um cansaço diferente, umas dores de barriga estranhas, a ter que ir mais frequentemente à casa de banho e a ver sangue nas fezes”, descreve. Associou-os à vida stressante que levava, sem horários e com refeições nem sempre indicadas e fora de horas. Deixou andar. “Nunca me passou pela cabeça uma doença crónica”, admite.

Só seis meses depois procurou o médico. Depois de uma colonoscopia, diagnóstico chegou: Crohn, uma doença inflamatória do intestino. “Nunca tinha ouvido falar da doença. Não reagi bem nem aceitei logo. Tinha uma doença crónica e essa palavra é muito forte. Mas fui obrigada a aceitar, não tinha outra escolha”, confessa Carla Soares.

Ela, habituada a ajudar os outros, precisou então de ajuda. Passou a tomar medicação para controlar os sintomas, mas, talvez pela vida stressante, sem horários e muitos esforços que continuou a levar, acabou por ter uma crise. Ficou de baixa. Ainda voltaria à Cruz Vermelha, mas, entretanto, engravidou e aos seis meses de gravidez foi “obrigada” a parar. “Eu queria ir fazer socorro mesmo com o barrigão”, salienta entre risos. “Gostava de ter chegado ao INEM, mas por causa da doença tive que abdicar desse sonho”, lamenta por outro lado.

A filha, Leonor, hoje com cinco anos, foi “uma dádiva” que surgiu no meio de todas as dificuldades. Mas a doença continuou a evoluir e as coisas precipitaram-se. “A menina nasceu em Agosto de 2013 e em Novembro desse ano fiz a primeira grande intervenção cirúrgica para retirar todo o intestino grosso”, recorda Carla Soares. “Não foi fácil receber a notícia e o meu maior medo era morrer e deixar a Leonor”, reconhece.

Depois da operação foi-lhe colocado um saco externo para as fezes e teve que se mudar para casa dos pais porque precisava de ajuda. Fez uma nova cirurgia de reconstrução do intestino, mas acabou um mês internada e ligada às máquinas, recorda. Seguiram-se algumas melhorias, o surgimento de uma fistula recto vaginal e novas crises. “Em Outubro de 2017 fiquei completamente incapacitada. Para ir do quarto à casa de banho tinha que usar fralda. Passei a usar fralda 24 sobre 24 horas”, descreve a paredense.

Até que, em 2018, foi ostomizada e colocou um saco para fezes definitivo. “Aí já aceitei porque sabia que era o melhor para mim. Eu não tinha qualidade de vida. Agora tenho mais, embora continue a ter crises fortes que me deixam incapacitada”, assume.

Filha dá-lhe força para continuar

Não pode trabalhar, nem fazer actividades de que gostava, como desporto, e tem uma incapacidade declarada de 90%. Também não tem acesso à reforma porque não fez descontos tempo suficiente. Conta com o apoio “incondicional” da mãe e do marido. “Ele abdicou de um emprego de sonho para poder estar mais perto de casa e dedicar-se a mim”, explica Carla Soares.

Mas é a filha que tem sido a força que a faz continuar. “Quando a Leonor está comigo eu nunca estou mal. Usar fralda é uma forma de estar com ela e fazer tudo o que uma ‘mãe normal’ faz. Quando estou de cama ela faz de minha médica e enfermeira. Ela sabe que a mãe tem um dodói na barriga. Mesmo em crise tento ao máximo que não perceba o que se está a passar. Quando estava em dias mais difíceis sabia que podia chorar até ela vir do infantário. Depois não”, conta a paredense.

Quando descobriu o grupo Doença de Crohn/Colite Portugal, além de descobrir mais apoio para si descobriu uma forma de voltar a ajudar os outros. Passou a ajudar com a petição e a apoiar outros doentes. “Isto é mau, mas é mais fácil de ultrapassar se tivermos um sorriso. Há muitos tabus e complexos sobre a doença e os doentes ainda se isolam muito. Se num momento de crise preciso de fralda para sair de casa é melhor do que ficar em casa isolada do mundo”, garante.

Ela deu também o rosto pela causa nos cartazes usados pelo grupo, em que surge vestida de supermulher, mas garante que representa todos. “O meu testemunho é para que outros possam ter a mesma coragem e força. Não sou mais nem menos que os outros. Não sou eu que estou no cartaz, somos todos”, sustenta.

É que a luta de uns é a luta de todos. Todos já viveram situações idênticas, muitas delas ligadas ao acesso a WC’s, que mostram a urgência desta petição. “Uma vez, junto à Estação de São Bento já vinha a caminhar devagar, cheia de suores frios e com medo de me sujar se não chegasse a tempo à casa de banho. Estava a agonizar quando entrei e disseram-me friamente que tinha que consumir para usar o WC. Pedi uma água, pus cinco euros em cima do balcão e fui à casa de banho sem querer saber de mais nada. Há falta de sensibilidade”, queixa-se.

Carla Soares diz ainda que não se esconde, mesmo notando os olhares. Faz praia de biquíni. “Eu não tenho que me esconder, se eu já me aceito a sociedade tem que me aceitar”, defende. “Há quem olhe para nós como coitadinhos e quem nos olhe como guerreiros, outros de forma constrangida, quase a reprovar o facto de mostrarmos o saco”, diz a natural de Paredes.

Reivindicações da petição são “uma gota” face às necessidades de cerca de 20 mil doentes

As reivindicações que constam da petição apresentada são “uma gota” nas necessidades de quem vive com uma doença inflamatória do intestino: um cartão de acesso a WC’s que permita aos doentes com este tipo de patologias aceder a instalações sanitárias disponibilizadas pelos estabelecimentos comerciais apenas a empregados; a isenção taxas de moderadoras para doentes com doença inflamatória do intestino e a inclusão destas doenças na Lista de Doenças Incapacitantes.

Por isso, Vera Gomes, natural do Vale do Sousa, e Ângela Vilas Boas Silva, signatárias da petição, não percebem o porquê da demora do debate na Assembleia da República da petição, com cerca de 11 mil assinaturas, entregue há quase um ano. O documento aguarda agendamento da discussão em sessão plenária depois de ter sido aprovado, recentemente, o relatório final na Comissão Parlamentar da Saúde.

Para lembrar o tema, Vera Gomes e Ângela Vilas Boas Silva, responsáveis pelo site Doença de Crohn/Colite Portugal, vão estar, esta quarta-feira, entre as 7h00 e as 16h00, juntamente com os doentes e familiares que aderirem, a entregar folhetos informativos e a responder a perguntas para lembrar o tema, rodeadas de centenas de balões roxos, a cor da doença.

“A saúde não se compadece de prazos administrativos. Vamos relembrar que a petição e as doenças inflamatórias do intestino não dão para pôr em pausa e esperar que a lenta burocracia portuguesa se decida a avançar. Será uma vigília pacifica para sensibilizar para a doenças que têm um grande impacto na vida das pessoas. É um dia de reunião de plenário e queremos chegar aos deputados. As pessoas não têm noção das implicações desta doença, há muito desconhecimento”, lamenta Vera Gomes, lembrando que estas doenças afetam 20 mil portugueses.

“O que pedimos na petição é uma gota, mas é um começo e para muitos de nós será uma ajuda considerável”, defende a signatária da petição. Este é um “ato simbólico” para “lutar pela dignidade dos doentes”.