A chegada da pandemia e o desconhecimento sobre a doença pôs todos à prova. Rita Veiga Ferraz, médica especialista em doenças infecciosas natural de Penafiel, diz que o último ano foi de “missão” e desafiante.
Num testemunho em que fala das muitas adaptações que o combate à Covid-19 obrigou a fazer no Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, onde coordena a Unidade de Doenças Infecciosas, admite que foi um período desafiante. “A pandemia vai deixar muitas marcas. As vidas perdidas, que não conseguimos salvar, os doentes que por força da pandemia não foram rastreados para determinadas patologias, diagnósticos que não foram feitos, doentes que não foram tratados”, elenca.
Nos momentos difíceis pensou que tinha saúde, assim como a família e os amigos, e uma equipa para a ajudar, quando havia muitos a ter a “infelicidade de passar pelo pior”.
“Antes tinha medo, hoje só quero que acabe para que todos possamos voltar a abraçar”, resume em relação à pandemia.
“Estas infecções se bem abordadas podem ser curáveis e essa sensação de fazer a diferença e salvar vidas é muito encorajadora”
Rita, agora com 35 anos, soube desde cedo que queria ser médica. “Quando era mais nova cheguei a pensar em ser veterinária, pela paixão que tinha pelos animais, e por ter passado a minha infância a cuidar deles. Mas logo que atingi o ensino secundário, decidi que o que queria mesmo era cuidar das pessoas que de mim precisassem. Não me imagino a fazer outra coisa, só música talvez”, diz com um sorriso.
Seguiu para um mestrado integrado em Medicina na Faculdade de Medicina de Lisboa (Hospital de Santa Maria), especializou-se em Doenças Infecciosas no Centro Hospitalar Universitário de São João, onde trabalhou seis anos, e realizou uma pós-graduação em Medicina Tropical pelo Instituto de Medicina Tropical de Antuérpia.
“Acabei por escolher a especialidade de Doenças Infecciosas, que é uma especialidade que lida com o diagnóstico, tratamento e prevenção de doenças agudas ou crónicas provocadas por agentes microbiológicos (bactérias, vírus, fungos e parasitas) e que abrange áreas como a prevenção e o controlo da infecção hospitalar, nomeadamente por bactérias multirresistentes, a garantia da utilização correta da terapêutica antimicrobiana, a Medicina Tropical, de viagem e populações móveis, as doenças emergentes em constante evolução e moldadas pelas alterações climáticas, pela globalização e pela própria imprevisibilidade dos microrganismos, de que o SARS-CoV-2 é um exemplo”, descreve a médica penafidelense. “É uma especialidade muito interessante por estar em constante mudança a par com a evolução da Medicina, e em que o avanço nas terapêuticas imunossupressoras (transplante, quimioterapia, imunomodulação) criam condições para o desenvolvimento de infecções graves e de difícil tratamento. Estas infecções se bem abordadas podem ser curáveis e essa sensação de fazer a diferença e salvar vidas é muito encorajadora. Daí que, se fosse hoje, escolheria a mesma especialidade”, garante.
“O desconhecido da doença alimentava uma constante sensação de medo que nos colocou a todos à prova”
Quando terminou a especialidade teve a oportunidade de voltar a Penafiel e começar um projecto de raiz. “Decidi abraçá-la, apesar de ter a noção de que não iria ser tarefa fácil”, conta Rita Veiga Ferraz. A médica veio para o CHTS criar uma Unidade de Doenças Infecciosas em 2018 e coordena uma equipa com mais dois elementos. A par disso, é ainda coordenadora do Grupo de Coordenação Local do Programa de Prevenção e Controlo de Infecções e Resistência aos Antimicrobianos do CHTS, um órgão de apoio técnico à direcção clínica do centro hospitalar.
“Estou muito orgulhosa do trabalho que temos vindo a desenvolver. Tive a sorte de poder arrancar com uma Unidade de Doenças Infecciosas, criada muito à semelhança do que aprendi no Centro Hospitalar Universitário de São João, que será sempre a minha escola (e uma família), e que esta Unidade trouxe uma relevante diferenciação ao nosso centro hospitalar”, afirma a médica, garantindo que foi possível “melhorar a prestação de cuidados e aumentar a qualidade no atendimento aos doentes”.
Pela especialidade que abraçou, Rita Veiga Ferraz tinha consciência de que uma pandemia “seria sempre uma possibilidade”. Ainda assim, não anteviu a realidade hoje vivida, qual “prova de fogo”.
“O desconhecido da doença alimentava uma constante sensação de medo que nos colocou a todos à prova, desde os administradores do hospital até aos profissionais de saúde”, reconhece. “Todos tivemos que, à luz do conhecimento do momento, readaptar, reinventar e muitas vezes alterar tudo de um dia para o outro. Notamos muito isso, no início da pandemia, que corríamos atrás das constantes actualizações da ciência e que não havia grande tempo para preparação”, relata a penafidelense.
“Os profissionais não se sentiam preparados, colocavam-nos imensas dúvidas e receios, não foram tempos fáceis”
As mudanças fizeram-se sentir em vários aspectos. “Inicialmente, a Unidade era constituída apenas por dois elementos, eu e o meu colega o Dr. Rogério Ruas. Eramos os especialistas em Doenças Infecciosas do Centro Hospitalar e, por isso, tínhamos a responsabilidade de responder de uma forma imediata a todas as exigências que iam surgindo”, explica Rita Veiga Ferraz.
“Recordo-me na primeira vaga de estarmos sempre no Hospital, todos os dias tínhamos reuniões com este ou aquele serviço porque tinha surgido mais um problema para resolver”, salienta.
Uma das principais preocupações passou por garantir a formação de todos os profissionais no que respeita a colocação e remoção de Equipamento de Protecção Individual (EPI). “Foi crucial. Hoje, e olhando para trás, parece-nos básico, mas na altura não foi. Os profissionais não se sentiam preparados, colocavam-nos imensas dúvidas e receios, não foram tempos fáceis”, frisa a médica. OS EPI eram, nessa fase, um “bem escasso” e teve de ser gerido como tal.
A par disso houve uma “revolução” no espaço físico do hospital, com a criação de circuitos Covid e Não-Covid em todos os departamentos. E uma vigilância constante dos casos de transmissão da infecção dentro do hospital para evitar surtos ou reduzir a sua dimensão garantindo a segurança dos doentes e dos profissionais, explica Rita Veiga Ferraz.
Ainda assim, com todo este trabalho, deram apoio aos lares da região nessa fase inicial.
“Na segunda vaga, felizmente, já estes problemas se encontravam de certa forma ultrapassados, e também contávamos com um terceiro elemento na Unidade, o Dr. Pedro Palma que veio de uma primeira vaga no Hospital de São João. Para dar resposta à segunda vaga (apesar de se manter a escassez de recursos) foi fundamental a união da Unidade de Infecciologia com a equipa do Serviço de Pneumologia, contando com a colaboração de todas as especialidades do Departamento Médico do CHTS. Nessa altura ficamos responsáveis por duas alas (de 26 camas cada) de doentes com infecção por SARS-CoV-2”, recorda a penafidelense. Tudo isto tentando sempre manter a assistência aos doentes Não-Covid.
“Marcou-me pela fragilidade do seu olhar quando me pediu que o ajudasse com a falta de ar. Não queria morrer. Estava muito doente. Não morreu. Valeu a pena”
“Deixei de ver a minha família, sim, mais por falta de tempo”, reconhece. A médica, como todos os profissionais de saúde, procurou evitar contágios reduzindo os contactos. Medo de se infectar diz que não teve, porque sabia as regras a cumprir. Não ficou infectada até hoje e já foi, entretanto, vacinada.
Sobre o futuro, não tem dúvidas. “Acho que a pandemia vai deixar muitas marcas. As vidas perdidas, que não conseguimos salvar, os doentes que por força da pandemia não foram rastreados para determinadas patologias, diagnósticos que não foram feitos, doentes que não foram tratados”, diz.
Sobre a sua experiência pessoal conta uma história: “Lembro-me de um doente velhinho, com uns enormes olhos azuis, dos primeiros doentes que tive, que me marcou pela fragilidade do seu olhar quando me pediu que o ajudasse com a falta de ar. Não queria morrer. Estava muito doente. Não morreu. Valeu a pena”.
Rita Veiga Ferraz garante que sente que o trabalho dos profissionais de saúde foi reconhecido. “Não foram poucas as vezes que recebi um ‘obrigado por tudo o que fez’, isso é reconfortante”, confessa.
Quanto à principal dificuldade neste ano de luta contra a pandemia afirma ter sido perceber as limitações. “Perceber que a minha intervenção como médica não era suficiente para salvar esta ou aquela pessoa. Isso sim foi o mais difícil. Os outros problemas, de uma forma ou de outra, acabavam por se ultrapassar. As vidas perdidas não”, conclui.