Passaram cerca de três semanas, mas quem visita as zonas afetadas pelos incêndios sente a tragédia como se tivesse sido ontem. Quem conta as histórias na primeira pessoa continua agarrado aos seus objetos, às memórias que o fogo levou. Já não há móveis e nalguns casos só paredes pintadas de preto, noutros, nem isso. O fogo tentou destruir tudo. Quase conseguiu. O cheiro ainda permanece, assim como a resiliência de um recomeço.
Na altura dos incêndios que assolaram o país, sobretudo o norte, a ARC – Indústria de Mobiliário, de Rebordosa, em Paredes, anunciou nas redes sociais que ia oferecer mobiliário às famílias cujas casas de primeira habitação tivessem sido destruídas. Quase de imediato, os pedidos de ajuda caíram na caixa de mensagens. A família Rocha, dona da empresa, não estava à espera de tamanha avalanche, mas isso acabou por lhes dar mais força e, na altura, asseguraram ao VERDADEIRO OLHAR que iam dar resposta a todas as solicitações.
Ontem, às 8h00, pegaram no carro e rumaram aos locais onde lhes chegaram esses apelos. Fizeram 400 quilómetros. Passaram por Albergaria, onde visitaram cinco famílias, por Águeda (2), São Pedro do Sul (1), Baião (1) e Cabeceiras de Basto (1). Ao todo visitaram dez casas, contou Inês Rocha, da empresa ARC.
“Andámos dezenas e dezenas de quilómetros por caminhos queimados”. O fogo deixou um rasto de destruição. Em muitos casos, “as casas têm que ser totalmente reconstruídas”, noutros “ainda se consegue aproveitar a estrutura”. O cheiro a queimado ainda se mantém. Inês Rocha contou ao VERDADEIRO OLHAR que ficou “emocionada e muito chocada” com o que viu. O demónio das chamas comeu vidas, memórias. “Um casal com um bebé de uma semana ficou sem casa. Uma senhora com 80 anos perdeu todas as recordações”, o fogo chegou traiçoeiro e levou-lhe tudo.
De certeza que, durante o dia de ontem, o dono da ARC, Armando Rocha, teve que engolir as lágrimas um infindável número de vezes. É que, há 38 anos, a pequena fábrica onde o pai laborava, mesmo por baixo de casa, foi consumida pelas chamas. Na altura, a família Rocha teve que deitar mãos à obra e “começar tudo do zero”. Hoje, e quando olha para o que os incêndios de setembro fizeram a muitas famílias, deve-lhe vir à memória o medo desse tempo.
Com esta visita às famílias, que perderam tudo ou quase tudo, quiseram “conhecer as pessoas” e, sobretudo, anunciar que “a ajuda prometida vai chegar”, que “não foram esquecidas”. E esta esperança num recomeço é, talvez, a melhor forma de exorcizar a tristeza que Inês e Armando Rocha viram no olhar de cada uma das famílias que visitaram.
As fotos que Inês tirou falam por si. E entorpecidos por estes cenários há que respirar e resistir, assim como resistiram as caixas de bolos dentro de um frigorifico que ficaram, quem sabe, para eternizarem a alegria de uma festa que ali tinha acontecido. No fogão mantém-se as panelas à espera de uma refeição que nunca foi servida.
Mas, e apesar da destruição, Inês Rocha reconhece que também “houve muita sorte”, porque pelos caminhos ardidos que percorreram, perceberam que as colunas de fogo rodopiaram à volta de muitas casas, mas não lhes conseguiram tocar. Sorte de quem ali vive e que vai ficar eternamente grato com “o muito trabalho dos bombeiros e das populações”.
Inês e Armando Rocha sabem que o caminho é longo e a estrada é escura, mas acreditam que a reconstrução das habitações será feita de forma celere, para que a ARC possa colocar o mobiliário e todas aquelas famílias consigam recuperar a sua vida.
Inês Rocha também quis enaltecer o facto de a partilha de ajuda que a sua empresa fez nas redes sociais ter motivado uma onda de solidariedade. “Tivemos muitas pessoas a querer doar-nos mobiliário para entregarmos às famílias, os nosso colaboradores também se disponibilizaram para fazerem o transporte que também nos foi oferecido”. Em duas semanas “gerou-se uma onda de solidariedade gigante”, frisou.
Agora, resta esperar. Para quem perdeu tudo, há que erguer-se e seguir em frente. O caminho não será fácil, mas melhora quando há a certeza que existem pessoas com um coração gigante, que dão a mão a quem precisa e tudo farão para não deixarem ninguém cair.