Hospital de Penafiel vai a casa. Doentes agradecem e dizem-se satisfeitos

Nos primeiros três anos do serviço de Hospitalização Domiciliária foram acompanhados 578 doentes e percorridos mais de 140 mil quilómetros. Recentemente foi criada segunda equipa e meta é crescer

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“Bom dia! Está bem? Então amanhã já acaba? Espero que tudo corra bem. Em princípio não vai ser preciso mais nada”, dizem médico e enfermeiro no meio de brincadeiras que põem o doente a rir. Duarte Leitão, de 71 anos, vai ter alta. “O cateter não tem doído?”, perguntam. “Não, não tenho tido dores”, responde o doente. “E já come melhor?”. “Já, graças a Deus”, acrescenta.

Há três anos que estas e outras conversas se repetem. Há três anos que médicos/as e enfermeiros/as vão fora de portas, ao encontro de pacientes internados em casa. O serviço de Hospitalização Domiciliária do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa (CHTS) é considerado um sucesso. A taxa de satisfação de doentes e cuidadores é de 100%.

Desde que saíram para atender o primeiro doente, a 5 de Abril de 2019, foram percorridos mais de 140 mil quilómetros e tratados 578 pacientes.  

Recentemente, foi criada uma segunda equipa. A meta é continuar a fazer crescer um serviço que traz vantagens como maior conforto e segurança ao doente e o faz estar menos exposto a infecções hospitalares.

“É muito diferente tratar um doente em casa ou em meio hospitalar. Há mais proximidade”

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

O serviço funciona 24 horas, mas as manhãs são particularmente importantes. É na troca de turnos, por volta das 8h00, que as equipas reúnem para fazer o ponto de situação de cada doente, avaliar as terapêuticas aplicadas e a evolução registada, e preparar o dia.

“Este está a fazer antibiótico”, “as análises estão melhores”, “tem de se dar alta a este doente”, “este fica mais quatro dias connosco”, comentam os médicos e enfermeiros.

Há tempo para algum convívio e para brincar sobre “quem vai ao volante” enquanto se prepara uma manhã de trabalho intensa. Antes da partida das duas equipas com médico/a e enfermeiro/a, uma em cada uma das duas carrinhas disponíveis, é ainda necessário preparar a medicação e dividir os doentes acompanhados, nove ao todo, neste dia.

Pouco depois saem para o terreno. Numa das carrinhas vão o médico Miguel Moreira, de Valongo, e o enfermeiro Cristiano Enes, de Paredes.

Miguel Moreira já tinha trabalhado no serviço de hospitalização domiciliária em Vila Nova de Gaia e, depois de um ano e meio como internista no CHTS, foi chamado para a equipa. Já Cristiano Enes, que esteve 15 anos num serviço de internamento em Matosinhos, tinha acabado de chegar ao centro hospitalar quando soube que estava a ser criada a unidade. Integrou o serviço desde o primeiro dia.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

Atraiu-os a forma diferente de trabalhar. “Pelo facto de ser uma equipa pequena geram-se cumplicidades. Conhecem-se os colegas e é quase uma família. O trabalho acaba por ser menos stressante”, reconhece Cristiano, enquanto se faz o percurso para a casa do primeiro doente da manhã, em Penafiel. “É muito diferente tratar um doente em casa ou em meio hospitalar. Há mais proximidade. No hospital não há tempo para conversas, é só passar visita”, reconhece Miguel Moreira. “Aqui conhece-se a pessoa além do doente”, acrescenta.

As viagens entre o Hospital Padre Américo e a casa do utente não podem demorar mais de trinta minutos, para garantir a segurança dos cuidados (é um dos critérios da hospitalização domiciliária), pelo que este serviço ainda não chega a todos os concelhos do Tâmega e Sousa. Mas há trajectos – entre casas de doentes – que podem demorar bastante mais do que isso, já que o território é vasto. Chegam a demorar 50 minutos, em alguns casos.

Durante os percursos, discutem-se os problemas dos pacientes, mas também há tempo para conversar sobre a vida.

“Não sabia que era possível ser tratado em casa”

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

Chega-se à primeira casa. É tempo de equipar com avental e luvas. A máscara já faz parte da indumentária do dia-a-dia.

Duarte Leitão, de 71 anos, está sentado no sofá.  Responde às perguntas, é avaliado e é-lhe administrada a medicação. A filha mantém-se ao lado e diz o que se passou. Conversa-se. O sénior foi internado devido a uma bactéria alojada na coluna. Esteve no Hospital Padre Américo durante três semanas. “Não sabia que era possível ser tratado em casa”, reconhece. Quando lhe propuseram esta solução, e porque a sua casa ficava numa zona do Marco de Canaveses onde ainda não chega o serviço, mudou-se, de forma temporária, com a filha, para casa de um irmão, em Penafiel, para poder beneficiar da hospitalização domiciliária. Não se arrepende. “Não tenho nada a dizer do atendimento, foi espectacular. Sinto-me bem tratado”, garante o sénior.

À filha, Marina Leitão, coube aprender a trabalhar com a máquina que administra a medicação. “Sempre que apitava ou não sabia o que fazer ligava e o atendimento foi sempre muito rápido”, conta. “Isso traz segurança. Se acontecesse alguma coisa havia rapidez de resposta”, acredita. Descreve este como “um internamento tranquilo” e sujeito a menos restrições do que no hospital, onde o tempo das visitas é limitado devido à pandemia. Ali, o pai esteve sempre num ambiente familiar e com uma equipa à distância de um telefonema para esclarecer qualquer dúvida. “Oxalá não seja novamente preciso, mas, se for, assim é melhor, porque o conforto é outro. Só falta alargarem o raio de acção do serviço”, defende Marina.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

A hora é de despedida. “Se não for eu a dar-lhe alta amanhã, felicidades para o resto da vida”, diz o médico.

É tempo de arrancar. Há mais doentes à espera. E, a qualquer momento, podem ser chamados para acorrer a alguma emergência, caso a situação de saúde de algum dos pacientes que acompanham se agrave.

“Lá também fui bem tratada, mas aqui estou no meu ambiente e com os meus à beira todos os dias”

Os benefícios da hospitalização domiciliária são muitos. Miguel e Cristiano destacam o conforto que é estar internado em casa e a baixa taxa de infecções, algo diferente do que acontece no ambiente hospitalar. “Muitos costumam dizer que dormem muito melhor em casa do que no hospital, porque nas enfermarias não há sossego. Gostam mais da comida de casa e alguns podem ‘passear’ dentro de casa ou no quintal”, dão como exemplo. Também acabam por ser beneficiados por poderem receber mais visitas (apesar de ser pedida contenção devido à pandemia), o que contribui para a saúde mental. Mas também há o outro lado, reconhecem. Há doentes que têm vergonha das condições em casa. Em algumas situações, a assistente social tenta, depois, ajudar.

Nova paragem, ainda em Penafiel, mas numa freguesia mais afastada. Conceição Cerqueira, de 72 anos, já os espera à porta.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

“Tem medido a diabetes?”, pergunta o médico. Examina-a e mede-lhe a tensão e batimentos cardíacos e ausculta-a. “Tem as tensões um bocadinho altas”, conclui. Analisa a caixa dos comprimidos a ver se a medicação foi tomada correctamente. Enquanto isso, Cristiano Enes prepara o que terá de ser administrado. A sénior mostra-se à vontade, conversa, brinca com os dois.

Passou três dias internada no Hospital de Penafiel devido a uma bactéria. Deu entrada com vómitos e diarreia, agora já ultrapassados. Quando lhe deram a possibilidade de ficar internada em casa, aceitou sem hesitar. “Estou melhor aqui do que lá”, garante. “Lá também fui bem tratada, mas aqui estou no meu ambiente e com os meus à beira todos os dias”, esclarece Conceição.

“Ligam-me todas as noites a ver se está tudo bem e, se tiver alguma dúvida, basta-me ligar para lá”, explica a doente. “Tenho o mesmo tratamento e a medicação certinha. Não me falta nada que eles ensinaram-me a fazer as coisas”, afirma a paciente, que conta com a ajuda do marido e do filho.

Conceição está bem, mas não deixa de perguntar, parada ao portão: “quando vou ter alta?”. “Tem de fazer 10 dias de antibiótico”, lembra o médico.

“Se for preciso, se ele se sentir mal, ligue-nos”

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

“Passa uma casa com limoeiros, duas casas de pedra… Ai vem por essa rua estreita, então veio ao contrário”. O GPS está a indicar o caminho, mas, ao telefone, Rosa Rocha, esposa do doente a visitar, procura ajudar a equipa a chegar à casa em Sobreira, Paredes.

Convida-os a entrar. Tem a panela no fogão. Mais ao fundo, na cama, José Rocha, de 65 anos, aguarda. “Não sei picar o dedo”, lamenta. O médico volta a explicar como se mede a diabetes. “Quantas unidades de insulina vai ter de fazer?”, pergunta o doutor Miguel, mostrando uma tabela. “Antes de almoço volta a picar para medir. Se tiver dúvidas, ligue”, apela.

“Hoje vai almoçar uma canjinha levezinha”, explica a mulher que acompanha tudo. É “namorada” de José há quase 50 anos, brinca.

“Vamos tirar sangue, está bem senhor José?”, questiona o enfermeiro Cristiano. José acede. Enquanto se brinca no quarto. “Então é do Benfica?!?”. “E sou natural do Porto”, ironiza o doente também com riso nos lábios.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

José foi motorista, fumava, foi buscar muitas cargas a pedreiras. Está a oxigénio. Chegou ao hospital com tosse e falta de ar. Ficou internado três dias até vir para casa. “Aqui é mais sossegado. Está-se sempre melhor em casa”, admite. Vê televisão, ouve música, é visitado pelas netas. “Estiveram cá ontem a ensinar-me. Só tive alguma dificuldade com a agulha. Todos os dias tenho de ver os níveis e apontar e eles vêm cá todos os dias de manhã”, resume. “Sinto confiança. Não fiquei com receio por ficar mais longe do hospital. Estou satisfeito”, garante o homem.  

À saída as indicações são sempre as mesmas: “Se for preciso, se ele se sentir mal, ligue-nos. Se não, o enfermeiro vai ligar logo à noite”.

Terminadas as visitas, é hora de regressar “à base”, as instalações da Hospitalização Domiciliária, à entrada do centro hospitalar.

O médico regressa às consultas no hospital. O enfermeiro trata de admissões e altas e prepara medicações. Há dias em que é preciso fazer novas visitas para ajudar os cuidadores e os doentes ou recolher equipamentos de quem teve alta. Ao fim do dia, há chamadas a realizar para garantir que tudo corre bem.

“Somos quase uma família que lhes entra diariamente em casa”

O serviço de Hospitalização Domiciliária do CHTS é uma “alternativa ao internamento convencional que permite aos doentes recuperar de uma doença aguda em casa, recebendo cuidados hospitalares”.

Foi recentemente reforçado e tem agora duas equipas com viaturas no terreno, com o objectivo de acompanhar ainda mais doentes. A meta inicial – 20 doentes – ainda não foi atingida, muito por atrasos trazidos pela pandemia, mas o serviço quer consegui-lo em dois anos.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

Nos três anos de funcionamento, foram percorridos mais de 140 mil quilómetros para prestar assistência a 578 doentes.

Lídia Rodrigues é enfermeira há 29 anos e está no projecto desde o primeiro dia. É um serviço 24 horas, sempre disponível à distância de um telefonema, explica a enfermeira gestora. “Durante a noite há sempre uma equipa de médico e enfermeiro de piquete, caso seja necessária intervenção. No final do dia liga-se sempre para casa dos doentes para saber como estão. Se algo não estiver bem, vamos lá, acabamos por funcionar por antecipação”, diz.

Segundo a profissional de saúde, a literacia em saúde é baixa na região, mas conseguem capacitar doentes e cuidadores, para que se possa levar “o hospital a casa”. “No dia em que vão para casa têm sempre a visita da enfermagem que deixa medicação e todos os equipamentos necessários, explicando tudo e capacitando doentes e família. Todos os dias da semana há visita do médico e enfermeiro e, ao fim-de-semana, vai o enfermeiro”, resume.

Lídia Rodrigues não tem dúvidas quanto aos laços que esta proximidade cria: “Somos quase uma família que lhes entra diariamente em casa. No hospital não há esta relação de proximidade. Criam-se relações de grande afinidade com a equipa. Às vezes, quando têm de vir ao hospital, depois passam aqui”.

A enfermeira gestora e também a médica coordenadora da Unidade de Hospitalização Domiciliária, Lindora Pires, falam com orgulho da taxa de satisfação do serviço, que é de 100%. Dentro desses, 85% dos doentes e cuidadores dizem-se “muito satisfeitos”.

“Tem havido um aumento da satisfação dos doentes e cuidadores e também há uma satisfação muito grande dos profissionais, o que também é fundamental”, salienta Lindora Pires.

Face ao início, a médica admite que houve mudanças. “Hoje levamos doentes mais graves do que levávamos. Havia insegurança e quase que queríamos levar doentes tratados”, conta com um sorriso.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

“Nestes três anos crescemos, perdemos alguns medos, ganhamos confiança a tratar os doentes. Agora conseguimos tratá-los mais em casa quando agudizam. Fomos todos treinados para tratar doentes no hospital e tivemos de aprender que se tratam doentes com gravidade em casa. Julgo que foi a maior mais-valia que conseguimos nestes três anos”, sustenta a responsável pela Unidade.

Há “utilizadores frequentes de internamento que quando chegam à urgência já dizem ‘eu quero ser tratado em casa’”

Lindora Pires não tem dúvidas de que o futuro do Sistema Nacional de Saúde passa por equipas destas. Mas lembra que há critérios a cumprir, que estão bem definidos.

O doente tem de ter condições no domicílio para estar em casa e é preciso avaliar se pode estar sozinho ou se precisa e tem um cuidador; há a questão geográfica, já que os serviços têm de conseguir responder em caso de emergência em tempo útil, pelo que a casa tem de estar a meia hora ou 30 quilómetros de distância do hospital, o que faz com que actualmente, Cinfães, Baião, Resende e Castelo de Paiva (este último, na maioria do território) sejam excluídos. Há ainda o critério clínico. “Precisamos de estabilidade. Há antibióticos que não podemos administrar em casa”, dá como exemplo, “e o oxigénio não pode estar acima dos quatro litros por minuto”.

Mais do que isso, doente e família têm de aceitar. “Há gente que hesita, que tem medo, que acha que não lhe vão atender o telefone depois. Mas o nosso número é próprio e está sempre com os enfermeiros e são eles que atendem, não há nenhuma central telefónica. E há casos de cansaço dos cuidadores, que preferem que os doentes fiquem internados”, refere a médica. Mas depois há “utilizadores frequentes de internamento que quando chegam à urgência já dizem ‘eu quero ser tratado em casa’”, acrescenta.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

Em casa, os doentes, sobretudo os mais frágeis, conseguem manter as rotinas e estão mais protegidos das infecções hospitalares, concorda.

Além de atingirem os 20 doentes, criando mais equipas, o serviço quer ver crescer as instalações, que já são exíguas, diz Lindora Pires.

Vantagens para doentes, famílias e para o hospital

“Parece evidente que o futuro deve passar por aqui”, afirma o presidente Carlos Alberto Silva em relação à Hospitalização Domiciliária. “À semelhança do que aconteceu há alguns anos nas áreas cirúrgicas, em que se mudou o paradigma e se converteram muitas cirurgias convencionais em cirurgia de ambulatório (com alta no mesmo dia da cirurgia), também aqui a tendência será de acompanhar cada vez mais doentes na sua residência. Numa região tão vasta como a do Tâmega e Sousa, certamente levará muito tempo a cobrir as áreas mais distantes, mas há ainda muito caminho a percorrer nas localidades mais próximas do CHTS e essa deve ser a prioridade”, sustenta em resposta ao Verdadeiro Olhar.

O responsável pelo CHTS reconhece que a abertura deste serviço veio “trazer uma abordagem mais moderna e actual na prestação de cuidados a doentes internados que podem ser acompanhados no domicílio”, ao mesmo tempo que se libertam “as camas do hospital para internamento de doentes mais complexos” sem esses “critérios de acompanhamento de proximidade”.

Carlos Alberto Silva vê vantagens para doentes e famílias, assim como para o hospital. Doentes e famílias têm “enormes poupanças de tempo e a permanência no seu ambiente habitual, mais personalizado e humanizado”, enquanto o centro hospitalar consegue “melhor utilização dos recursos existentes para doentes mais complicados, além da implementação das boas práticas da medicina moderna”.

Para assinalar os três anos do serviço está patente na entrada do Hospital Padre Américo uma exposição.