Em Penafiel há livros sobre rodas. Livros que deixam as estantes da Biblioteca Municipal e percorrem o concelho em busca de alguém que os queira ler. E, mês a mês, são centenas as crianças que sobem o degrau de madeira e transpõem a porta da carrinha da Bibliomóvel à procura de um novo livro que as faça sonhar.

A biblioteca itinerante de Penafiel fez 15 anos em Abril. Vai a caminho dos 16 e a carrinha, com cerca de 160 mil quilómetros percorridos, não dá sinais de querer parar. O mesmo acontece com Rui Guedes, responsável pelo projecto, que diz ter “o melhor emprego do mundo”.

Serviço está sobretudo focado nas crianças mas quer chegar a outros públicos

Chegamos ao Centro Escolar de Irivo. A algazarra é muita, ainda que as turmas venham ao Bibliomóvel uma de cada vez. Todos querem ser os primeiros a escolher livros, embora depois fiquem indecisos e sem saber qual levar para casa. As corridas, os sorrisos, os gritos de excitação e a busca incessante pela próxima história repetem-se durante cerca de duas horas.

Para Rui Guedes isto já é rotina. Uma rotina com mais de 15 anos e algumas estórias para contar. Os pequenos leitores dos inícios do serviço Bibliomóvel são agora estudantes do secundário e do ensino superior que agora recorrem aos serviços da Biblioteca Municipal de Penafiel. Alguns ainda o reconhecem e, nos sorrisos, percebe que o trabalho feito deu frutos.

O projecto da Bibliomóvel de Penafiel arrancou em Abril de 2002 para descentralizar os serviços da Biblioteca Municipal e levá-los a todas as freguesias de um concelho extenso e disperso. “O concelho é muito grande e havia populações de algumas freguesias com muita dificuldade em aceder aos serviços da Biblioteca”, explica Adelaide Galhardo. A directora da Biblioteca Municipal de Penafiel, agora e na altura, lançou o desafio à autarquia de avançarem com um serviço de biblioteca itinerante. A ideia foi bem acolhida, escolheu-se a carrinha, que foi adaptada pelos funcionários municipais, e avançou-se com o projecto para o terreno.

No início, confessa Adelaide Galhardo, encontraram alguma relutância, até nas juntas de freguesia, pelo que a Bibliomóvel passou a dedicar-se sobretudo às escolas do primeiro ciclo, numa altura em que ainda não havia rede de bibliotecas escolares. “Começamos a circular, visitando os serviços mais centrais das freguesias, os adros da igreja, as sedes da junta. Mas com o avançar do projecto vimos que a afluência não era a que pretendíamos, queríamos chegar ao máximo de pessoas possível. E, uma vez que as escolas ainda não estavam dotadas de bibliotecas escolares, decidimos focar o nosso serviço no apoio às escolas do primeiro ciclo do concelho de Penafiel”, complementa Rui Guedes.

“Hoje em dia, os jardins-de-infância já nos pedem para passar lá e vamos continuar a trabalhar com as juntas de freguesia para alargar o nosso âmbito e tentar chegar a uma população mais idosa. Queremos chegar a outros públicos”, sustenta Adelaide Galhardo.

Muitos quilómetros percorridos e muitos livros para escolher

Mas voltemos às escolas. A Bibliomóvel adaptou os seus serviços ao calendário lectivo. Todos os meses, no período de aulas, passa por todas as freguesias, às vezes mais que uma vez.

O serviço de empréstimo é simples. Quem não tem um cartão do Bibliomóvel deve fazê-lo, no início do ano lectivo, quem já tem pode logo levantar livros. Essa é a única condição. “Ao contrário do que estipula o regulamento da Biblioteca Municipal, local em que podem ser levantados três livros de cada vez, na Bibliomóvel, com um fundo mais curto, podem levar apenas um. À excepção dos professores dos jardins-de-infância que podem levar seis livros para cada uma das salas”, explica Rui Guedes.

Não há ninguém que conheça o processo como ele. Ele que aceitou o desafio e está no projecto desde o primeiro dia, desde o primeiro quilómetro da carrinha, agora conduzida por Júlio Lopes. “Achei desafiante, queria sair do espaço da biblioteca numa perspectiva de conhecer outras realidades”, conta.

É ele quem, diariamente, lida com as crianças, recebe os livros emprestados e lhes entrega as novas histórias. É ele quem, muitas vezes, aconselha ou desaconselha a escolha de um livro. É ele que ajuda a lançar a semente e vê, depois, germinar nos mais novos o gosto pela leitura.

“Ao princípio é natural que queiram explorar a Bibliomóvel como algo que lhes permite sair da sala, vir cá fora e ter contacto com outras realidades. Acredito que muitos, nas primeiras vezes que requisitam o livro, não vêm com esse intuito de escolher um livro, será uma percentagem pequena que o faz. Mas depois há um grande número de leitores que vem à procura de um livro, que já sabe o que quer. As crianças ainda gostam de ler”, garante o natural de Paredes.

O fundo da Biblioteca Itinerante de Penafiel tem cerca de 5.000 mil livros. Mas por questões de logística, diariamente, circulam na carrinha cerca de 2.000 livros. Em média, mensalmente, são requisitados entre 1.300 a 1.500 livros, diz Rui Guedes. Mas os números não ficam por aqui. “Fazer a conta dos quilómetros percorridos é uma conta fácil de fazer: são cerca de 10 mil quilómetros por ano, por isso são cerca de 160 mil quilómetros que tem a Bibliomóvel”, adianta.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

A escolha é grande e, por isso, nem sempre é fácil. Ainda há muitos que escolhem o livro pela capa, outros que escolhem o que o colega levou, porque chamou a atenção, mas também há “um público exigente”. “Há crianças que chegam aqui e pedem um livro com determinação e isso deixa-me feliz”, salienta.

Entre os livros mais procurados estão os de Sophia de Mello Breyner e os das colecções “Uma Aventura” e “Triangulo Jota”. “São livros que falam de coisas que se passam em escolas, de mistérios, de amizades e em que os protagonistas são crianças”, refere.

Há estórias que marcam e ensinamentos que ficam

Deste percurso de já quase 16 anos vão ficando histórias. Umas mais caricatas, outras que marcam pelo significado. Há uma que Rui Guedes conta muitas vezes. “Houve uma criança que logo nos primeiros tempos da Bibliomóvel, ali numa freguesia perto do centro da cidade, me deixou incrédulo. Naquelas primeiras vezes eu explicava como manusear o livro e os cuidados a ter, dizia para folhearem as páginas com cuidado para não estragar e para não as sujar e houve um miúdo que quando disse para não sujar ficou assustado a olhar para mim e pousou logo o livro na estante. Eu perguntei porquê e ele disse que tinha as mãos cheias de terra porque de manhã tinha estado a ajudar os pais no campo e não podia pegar no livro. Essa história marcou-me. Primeiro porque estavam a ouvir aquilo que eu estava a dizer e depois por ainda haver crianças se levantavam cedo para ir para o campo ajudar os pais em pleno ano lectivo”, recorda o responsável pela Biblioteca Itinerante.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

Rui Guedes não tem dúvida da importância deste projecto, não só pela missão de formar públicos mas pela dimensão humana. “Lidar com as crianças é uma responsabilidade muito grande, mas é um trabalho que dá muito gosto. É preciso ter cuidado, temos a responsabilidade de os educar na leitura, temos que ter cuidado na forma como falamos com eles, nas coisas que lhes dizemos, e tenho a noção de que aquilo que vou incutir a uma criança poder-se-á reflectir, futuramente, naquilo que ela poderá ou não gostar de fazer em relação aos livros. Isso também me motiva”, confessa.

É que mais que livros, este projecto leva às freguesias uma proximidade que ajuda em vários contextos. “O fundo bibliográfico até pode estar mais curto, por haver muitas requisições, mas o simples facto de irmos e contarem com a nossa presença até só para dizer bom dia faz a diferença”, acredita o técnico da Bibliomóvel. E dá um exemplo. “Há uns anos estava numa freguesia, logo a seguir à crise de 2008 que tocou muitas famílias em Penafiel e levou muitos a emigrar, e percebia que as crianças procuravam-me muito e faziam muitas perguntas que até nem tinham nada a ver com o Bibliomóvel. Comentei com uma professora que me disse que eles sentiam a falta da figura masculina, do pai, e procuravam-me não para o substituir mas para se sentirem próximos da figura paterna. Isso valoriza a nossa missão”, acredita.

“Para a maioria destas crianças seria difícil aceder a livros sem o Bibliomóvel”

Uma das principais metas deste projecto era aproximar a leitura da população. E os responsáveis pelo Bibliomóvel crêem que foi cumprido. “Não tenho dúvidas que, hoje em dia, mais pessoas leêm devido a este serviço da biblioteca. Os hábitos de leitura continuam e o balanço é positivo. Ao longo destes anos chegamos a milhares de alunos e professores e são cada vez mais os pedidos para utilizar o Bibliomóvel. O mais difícil é calendarizar”, diz Adelaide Galhardo.

E este sucesso reflecte-se na própria Biblioteca Municipal, já que os ex-leitores da Biblioteca Itinerante recorrem depois aos serviços da casa-mãe. “Todos os dias há leitores, de 16 e 17 anos e outros na universidade, que fizeram a sua inscrição na escola e vinham ao Bibliomóvel e que regressam aos serviços da Biblioteca pelo cartão que tinham dessa altura”, dá como exemplo Rui Guedes.

Traduzir isso em números não é fácil, reconhece, mas adianta que, em 2002, a Biblioteca Municipal de Penafiel tinha cerca de 3.000 utilizadores e agora rondam os 15.000.

Olhando para trás, Rui Guedes não tem dúvidas: “Para a maioria destas crianças seria difícil aceder a livros sem o Bibliomóvel”.

Já lançou dois livros e tem “o melhor emprego do mundo”

Para Rui Guedes estes mais de 15 anos também fizeram a diferença. O natural de Paredes fez o 12.º ano e um curso técnico profissional de Biblioteca e Documentação. Trabalhou na biblioteca da Universidade Portucalense, no Porto, passou pela Biblioteca de Lousada até ser desafiado a abraçar o projecto do Bibliomóvel de Penafiel.

Perguntamos o que mudou. “Aprendi a gostar mais dos livros na perspectiva de quem os disponibiliza para outras pessoas. Tinha uma imagem minha enquanto leitor de que guardava as histórias para mim e vi-me, de um momento para o outro, a ser o veículo que leva os livros aos outros. A minha atitude perante a leitura e os livros deixou de ser a de pessoa que está a consumir livros e a guardar a memória do que leu para si e passou a ser a de transmitir essa memória a crianças que estão a dar os primeiros passos na implementação de hábitos de leitura. Isso mudou a minha forma de estar, o suficiente para também eu querer escrever histórias também para eles”, afirma.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

Lançou já dois livros. O primeiro, lançado em 2016, chama-se “Ri o Joaquim com Cócegas Assim” e fala sobre bibliotecas. “Era inevitável”, brinca Rui Guedes. “É sobre alguém que descobre na biblioteca um livro que vai mudar a sua vida, numa metáfora simples do poder mágico dos livros e da sua capacidade de mudar o mundo. Se não for mais, o mundo em que cada um de nós vive”, acredita o autor. Agora apresentou um segundo trabalho, também para o público infantil, chamado “Ao fundo da minha rua… três contos”, uma mistura de fábula com realidade e indefinição sobre como a história vai acabar.

Neste segundo livro, a Biblioteca Itinerante também está presente. “O primeiro conto do segundo livro é inspirado numa história curiosa de uma menina que vinha ao Bibliomóvel. Durante os quatro anos em que veio nunca lhe consegui ouvir uma palavra. Nunca me disse nada”, recorda.

“Escolher trabalhar no projecto do Bibliomóvel foi a opção certa?”, perguntamos. “Sem dúvida”, responde sem hesitar. “Quando fazemos aquilo de que gostamos temos o melhor emprego do mundo. Gosto muito daquilo que faço e acho que isso se reflecte naquilo que escrevo”, conclui Rui Guedes.