Hannah Arendt foi uma mulher excessiva, impulsiva, inteligente e corajosa, nascida em Outubro de 1906, a tempo de assistir directamente ao surgir dos regimes totalitários. A sua origem judia acrescentou dramatismo à experiência porque, na fase inicial da ascensão nazi, chegou a passar oito dias numa prisão da Gestapo (polícia secreta nazi), antes de fugir para Paris e, finalmente, para os EUA.
Arendt ficou célebre pela análise pouco convencional de como as ditaduras arraigam na cultura e na vida das pessoas. Os crimes horrorosos daqueles regimes parecem o resultado de perversões infames, no entanto, Arendt reparou que as depravações extremas ocorreram em raríssimos casos, a maioria comportou-se como uma manada passiva, apenas se adaptou ao novo poder.
Como é que o regime nazi conseguiu matar muitos milhões de judeus? Não bastaria um milhar de loucos raivosos para levar a cabo uma operação de tal envergadura, ela só foi possível porque milhões de funcionários aceitaram essa adaptação subtil e cada um desempenhou o seu pequenino papel. Foram precisos dezenas de milhares de comboios para transportarem tantos milhões de prisioneiros para os campos de concentração e isso exigiu o trabalho de uma estrutura de dezenas de milhares de funcionários dos caminhos de ferro. Um, só verificou as cavilhas dos vagões; outro, só manobrou as agulhas; outro, só deu o sinal de partida; outro, só deitou carvão na caldeira; outro, só conduziu a locomotiva… o resultado foi o transporte de milhões de prisioneiros. Claro, sem dizer que eram prisioneiros ou que iam ser mortos.
A sintonia («Gleichschaltung») de toda a população não consiste em recrutar criminosos mas em conseguir que a maioria da população se adapte. Se o dactilógrafo desempenhar a sua função, se a telefonista passar as chamadas, se o estafeta levar as mensagens, se o burocrata cumprir o regulamento… no final, temos uma gigantesca estrutura a trabalhar de forma competente e eficaz.
Um dos elementos fundamentais para conseguir a «Gleichschaltung» é convencer cada indivíduo de que o seu contributo é muito limitado (manobrar agulhas de caminho de ferro não é matar pessoas!) e que a desobediência tem um preço exorbitante.
A ciência da adaptação ao poder tem requintes por parte dos indivíduos e da autoridade. Numa primeira fase, as pessoas metem uma baixa médica, desculpam-se com os atrasos do trânsito, fingem que não perceberam a ordem. Ao princípio, não convém hostilizá-las. Depois, a pressão cresce e alguns cedem, cria-se o precedente, interioriza-se o «não quero saber». A fase seguinte consiste em impor castigos exemplares e desproporcionados. Em nome do rigor burocrático, a telefonista que chegou atrasada é torturada; em nome da qualidade do serviço, o maquinista ferroviário é preso e os filhos menores são fechados num asilo. O objectivo destas medidas não é evidentemente melhorar o serviço, mas aterrorizar a população para que se adapte.
As descrições de Hannah Arendt retratam a actuação do Ministério da Educação português na disciplina de «Cidadania». Para fechar os olhos aos professores que se opunham à ideologia de género dispensou a avaliação externa a esta disciplina; consentiu que as famílias usassem manhas para os filhos faltarem a certas aulas. Agora, entrou na segunda fase, a de aterrorizar a população castigando cruel e publicamente a resistência. Não interessa se milhares de crianças ainda escapam sub-repticiamente à doutrinação da «Cidadania», o importante é escolher um caso isolado para servir de valente lição a todos.
Estas etapas eram conhecidas, mas ninguém esperava o grau de violência do Governo contra duas crianças. Depois de decidir que reprovassem dois anos, um gabinete dependente do Primeiro-Ministro sugeriu, na semana passada, que estas duas crianças podem ser retiradas aos pais.
Esta gente esqueceu-se de que Deus existe.