Ermesinde: “Ser maquinista foi uma fortuna que me saiu”

António Pinto Monteiro é apaixonado por comboios desde criança. Chegava a fazer três quilómetros a pé para ir de casa à estação quando via os comboios chegar

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Pode-se dizer que a paixão por comboios de António Pinto Monteiro existe desde que tem memórias. De casa dos pais, em Santa Marinha do Zêzere, Baião, via-se a estação da Ermida e conseguia ver os comboios a chegar.

“Eu era perdido pelos comboios. Vivia a cerca de três quilómetros da estação da Ermida. Era lá que os comboios tomavam água e eu ia para a estação abrir a água aos maquinistas”, recorda o homem de 81 anos que, mais tarde, também haveria de conduzir comboios com centenas de pessoas. “Ser maquinista foi uma fortuna que me saiu”, garante. Foi funcionário da CP durante 37 anos.

António Pinto Monteiro é uma das pessoas que dá, este sábado, um testemunho, no âmbito da tertúlia “Pare, Escute e Olhe para ouvir memórias”, integrada no EntreLinhas – Festa do Ferroviário, que está a decorrer em Ermesinde até domingo, com conferências, exposições, concertos e mostras, entre outros. O evento pretende homenagear os ferroviários que ajudaram a construir a cidade de Ermesinde.

“Acartava centenas de quilos de carvão à cabeça em cestos”

Dos oito irmãos, António Pinto Monteiro foi o único que pendeu para a ferrovia. Tudo devido a esta “paixão” que sempre teve pelos caminhos-de-ferro.

A morar em Ermesinde há 50 anos, conta que antes de ir à tropa já era um trabalhador eventual da ferrovia. “Andava a dar serventia a fazer caleiras de cimento ao lado da linha”, refere. Seguiu-se o serviço militar, em 1962, e um período no Ultramar.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

Quando regressou, ingressou nos quadros da CP. Estava-se em 1965 e os tempos eram outros. Entrou na categoria de servente de tracção, “que era o princípio da carreira de maquinista”. Começou na Póvoa de Varzim, mas logo pediu transferência para a Régua, para estar mais perto da família. “Acartava centenas de quilos de carvão à cabeça em cestos. Era preciso meter 10 toneladas de carvão na máquina. O comboio saía de Contumil às 22h00 e só chegava à Régua às 8h00. Depois era preciso tirar os resíduos de carvão e criar nova fornalha e abastecer a máquina do comboio de mercadorias. Éramos quatro a acartar e dois a encher”, relata o natural de Baião.

“Era uma servidão, se hoje fosse assim ninguém queria ir para os caminhos-de-ferro”, assume o homem de 81 anos que tem a antiga quarta classe.

Dois a três anos depois, concorreu para ser fogueiro. Era o homem que ia ao lado do maquinista. “Ainda enfurnei muito carvão, depois começou a haver máquinas a óleo”, recorda. Isso coincidiu mais ou menos com a altura em que concorreu a maquinista.

Depois de mais três anos como fogueiro foi tirar o curso de maquinista no Entroncamento, em 1971. Começou a fazer comboios para a Póvoa de Varzim, Esposende, Famalicão, Lousada e Fafe. Depois pediu para mudar e fazia comboios para a Régua e Barca D’Alva. A família, que ainda morava em Baião, veio nessa altura para Ermesinde. Tinha dois filhos e nasceram mais dois.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

 “Trabalhei nos caminhos-de-ferro num tempo em que só se descansava um dia por semana, fazia um comboio de mercadorias, ou se descansava ou se visitava a família”, resume.  

“No início houve saudades de ser maquinista, agora já não são tantas”

“Agora não custa nada ser maquinista”, compara António Pinto Monteiro. Noutros tempos, era responsabilidade do maquinista sempre que se derretia um bronze. Eram eles que tinham de pagar. Também era “uma responsabilidade”, porque levavam-se centenas de pessoas. “Havia duas coisas importantes, saber onde eram as estações e cumprir a sinalização. Nunca tive acidentes”, orgulha-se.

Pelas mãos deste antigo maquinista passaram máquinas a carvão, a óleo e gasóleo e depois mais automotoras que máquinas, relata. “Entre Ermesinde e Susão regulava-se a carga de um comboio. Se subisse aqui subia em todo o lado”, dá como exemplo.

Ainda chegou a ir fazer o curso de inspector, mas percebeu que não era o que queria e voltou a maquinista.

Foi nessas funções em que ficou até 2002, quando se reformou. “Estou reformado há mais de 20 anos e ainda hoje tenho uma paixão por isto. “No início houve saudades de ser maquinista, agora já não são tantas. Mas gostava muito de conduzir comboios”, atesta o sénior.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

Entre as muitas histórias boas, guarda na memória também algumas más. “Uma altura, fui levar um comboio carregado de madeira a Darque para uma fábrica de papel e havia um túnel. Íamos a 90 quilómetros por hora. Ao entrar, bateu-me qualquer coisa na cabeça e fiquei todo cortado na cara. O sangue escorria em bica e eu só limpava nos olhos para tentar chegar à estação de Barroselas. Depois percebemos que foi um vidro que se tinha soltado. Levei 32 pontos na cara”, lembra-se. Aguentou ser cosido sem anestesia, como lhe recomendou o médico na altura, e conseguiu ficar quase sem marcas no rosto.

Lamenta também as vezes em que os comboios que conduzia contribuíram para morte de pessoas. “Vinha com uma automotora do Porto para cima e, num dos túneis, estava um corpo com o pescoço em cima do carril. Foi um homem que se quis suicidar. Passamos por cima dele. Já em Barcelos, numa passagem de nível em que só passavam peões, houve dois rapazes que entraram em ziguezague com uma motorizada. Foram contra a automotora e morreram. É triste ver estas coisas. São situações muito difíceis”, admite António Pinto Monteiro. Mas quando os comboios iam a muita velocidade, eram precisos muitos metros para parar, explica.

Ainda assim, o residente em Ermesinde não tem dúvidas: “O comboio é o transporte mais seguro e mais bonito que existe”. “Ainda ando muito de comboio, sempre que vou à minha aldeia e também para passear”, refere.

Na terra que escolheu para viver, onde se encontram as linhas do Douro e do Minho, há “muitos ferroviários”, por isso, António Pinto Monteiro considera esta uma “homenagem muito bonita”.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar