Durante oito anos, uma vítima de violência doméstica em Penafiel, que acabou morta às mãos do marido, teve contacto com entidades de cinco áreas de intervenção do Estado e da Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica que “procederam à recolha de dados, mas cujas intervenções se caracterizaram por serem meramente reactivas, parcelares e descontinuadas, e que podem ter constituído oportunidades perdidas de intervenção”, conclui o oitavo relatório da Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica. “O sistema de intervenção, como um todo, falhou, não foi capaz de articular e transmitir a informação entre os vários sectores, de compreender e interpretar as especificidades, os receios, as inseguranças, as hesitações e os não ditos da vítima, de os ler no quadro da grande fragilidade e dependência alcoólica. Também a comunidade local parece ter desistido de a proteger”, lê-se.
Em causa está a morte de uma mulher de 50 anos, doméstica e desempregada, residente nas Termas de São Vicente, em Penafiel. Terá sido vítima de violência doméstica durante quase três décadas. Em Julho de 2017 o marido, de 53 anos, operador de explosivos, matou-a e suicidou-se em seguida. O corpo da mulher foi encontrado na cama com sinais de agressão (com lesões traumáticas na face, tórax, região lombar, membro superior esquerdo e em ambos os membros inferiores) e um bilhete na mesinha de cabeceira, atribuído ao marido, lia-se “eu não queria fazer isto eu fui para o monte acabar [com] a minha vida”. O corpo do homem, que se enforcou, foi encontrado no monte a 100 metros de casa.
Segundo o relatório, entre 2009 e 2017 a mulher tinha ido 12 vezes ao centro de saúde tratar ferimentos e tinham sido registadas três queixas na GNR que acabaram arquivadas pelo Ministério Público. O casamento era marcado pelo consumo excessivo de álcool, um vício de ambos, e o caso era do conhecimento de vizinhos. “Genericamente esta situação respeita a um casal disfuncional, com forte dependência do álcool (ambos), no qual o marido trabalhava durante a semana e a mulher ficava em casa adstrita aos trabalhos domésticos. Os problemas do casal eram do conhecimento de vizinhos tendo a irmã da vítima formalizado denúncia desse facto junto da GNR territorialmente competente. A situação vivenciada por este casal foi comunicada à Segurança Social, a qual nunca conseguiu uma reabilitação dos mesmos. (A mulher) apresentava constantemente sinais de embriaguez e furtava-se aos contactos com as patrulhas da GNR, escondendo-se em casa. Sempre negou as agressões do marido quando questionada sobre as mesmas”, explica a GNR, ouvida pela equipa que elaborou o documento.
O relatório explica que, ao longo desses oito anos, as intervenções na área da saúde limitaram-se “ao tratamento sintomático e à reparação das lesões físicas e psicológicas, sem que procurasse averiguar da sua origem, nomeadamente se decorrentes da existência de violência doméstica ou, pelo menos, sem que tal pesquisa tivesse sido documentada”. “Mesmo no único caso em que há registo de violência doméstica, não foi desencadeada qualquer medida no sentido de precaver a repetição de novos acontecimentos”, refere.
Já a estrutura de atendimento da Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica (RNAVVD), que em 2014 acompanhou a vítima por maus tratos físicos e psicológicos graves “encaminhou a vítima para uma entidade de apoio às dependências, face ao consumo excessivo de álcool, não tendo promovido o acompanhamento continuado quanto ao contexto de violência doméstica em que se encontrava inserida, e que com alta probabilidade se manteria”.
Já a Segurança Social “não obstante ter conhecimento da gravidade da situação, que determinou, em 2016, um pedido de acolhimento da vítima, considerou-a estabilizada logo que foi acolhida em casa de uma irmã, nada mais tendo feito para averiguar da (des)continuidade das agressões e das necessidades de protecção, apoio e assistência”, sendo que a mulher em dois meses voltou à casa onde residia com o marido, conclui o documento.
Também o Ministério Público e a GNR “tiveram uma acção claramente insuficiente para fazer cessar o ciclo de violência a que (a mulher) se encontrava sujeita”. “Demitiram-se, do ponto de vista criminal, de efectuar uma efectiva investigação e recolha de prova, desencadeando acções que se limitaram a seguir uma actuação formal, responsabilizando as hesitações, os recuos e a não colaboração da vítima pelo arquivamento dos inquéritos, e não tomando a iniciativa de identificar outros meios de prova”, acredita a equipa que analisou o caso. “O Ministério Público, no inquérito arquivado por insuficiência de prova e onde no seu decurso se avaliou como grave o risco para a saúde, integridade física e para a vida da vítima, apesar de esta não ter requerido continuar a beneficiar do estatuto de vítima, não ponderou a comunicação da situação às estruturas da RNAVVD para que fosse garantido o seu acompanhamento e a continuidade do apoio social”, acrescenta a mesma fonte.
Perante estes factos, a equipa recomenda às “entidades promotoras das estruturas de atendimento da RNAVVD e ao ISS, I.P. que promovam o acompanhamento continuado e a monitorização das vítimas que se encontram sinalizadas num contexto de violência doméstica, independentemente de terem apresentado denúncia criminal e ou de residirem com a pessoa agressora, procedendo à averiguação da (des)continuidade das agressões e das necessidades de protecção, apoio e assistência das mesmas”. Recomenda ainda ao Governo “que atribua urgência à elaboração do manual de atuação funcional que versará sobre a acção dos órgãos de polícia criminal nas 72 horas subsequentes à apresentação da denúncia por maus tratos cometidos em contexto de violência doméstica, tendo em vista uma melhor proteção e apoio à vítima e a preservação e aquisição urgente da prova”.