A dor de perder uma filha para uma doença rara e de viver um luto que poucos entendem

(C/ FOTOS E VÍDEOS) A 29 de Fevereiro assinala-se o Dia Mundial da Doença Rara. A pequena Gabriela viveu dois anos de luta contra uma Doença Congénita da Glicosilação

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A Gabriela está presente em cada recanto da casa que partilhou, de forma breve, com os pais. Está nas fotografias espalhadas pela entrada e pela sala, no quarto – intacto -, no boneco preferido em que a mãe ainda acredita sentir o seu cheiro. Acima de tudo está sempre na mente dos pais que, a cada passo, choram pelas coisas que viveram e por aquelas que não conseguiram experienciar com a filha sonhada.

A filha de Célia Marques e Luís Brito, residentes em Alfena, lutou pela vida durante dois anos. Entrou e saiu de internamentos hospitalares, fez centenas de exames e consultas, fez cirurgias, mas de nada adiantou. Acabou por falecer devido a uma doença rara, a síndrome das CDG – Doenças Congénitas da Glicosilação.

Foi há sete meses. E se a dor separa alguns casais a este uniu-os. Os pais chamam-lhe agora Gabriela – a princesinha dos caracóis cor de avelã e criaram uma página nas redes sociais onde divulgam a sua história. Querem sensibilizar as pessoas para as doenças raras e para o luto parental, muitas vezes incompreendido por quem os rodeia. “Não se resiste à morte de um filho. Sobrevive-se porque tem de ser”, confessam.

Acreditar que não foi a última vez que viram a filha é o que os motiva a levantar-se todos os dias.

A 29 de Fevereiro – um dia raro que só se repete de quatro em quatro anos – assinala-se o Dia Mundial da Doença Rara.

Foto: DR

“Os médicos disseram-nos dêem-lhe muito colo e tirem muitas fotos que ela não vai sobreviver”

A história de Célia e Luís poderia ser igual a tantas outras, mas não foi. A gravidez, desejada, surgiu mais cedo do que planearam, mas isso só os fez apressar os planos. Encontraram uma casa e foram viver juntos para dar à Gabriela, a menina que vinha a caminho, o lar que merecia. “Ficamos assustados, mas contentes e começamos a planear a vinda dela. Como éramos pais de primeira viagem era tudo mais intenso”, contam.

Célia Marques, agora com 28 anos, natural de Alfena, foi seguida desde o início no Hospital de São João, no Porto, porque tinha as tensões altas. Mas aparentemente, tirando as náuseas, a gravidez decorreu sem sobressaltos. “Enquanto ela estava na barriga foi tudo perfeito”, recorda a mãe. A sua premonição concretizou-se: “Achava que ela ia nascer na Páscoa e nasceu”. A menina veio ao mundo a 16 de Abril de 2017, pelas 20h36. Foi um parto demorado, que deixou a mãe sem forças, e que obrigou a que a bebé fosse retirada com recurso a uma ventosa. “Ela já estava em sofrimento. Nasceu castanha, envolta em fezes e nem me deixaram cortar o cordão umbilical”, conta o pai, Luís Brito, de 31 anos, nascido em Vila do Conde.

Depois de um parto que não foi o que sonhavam começaram os problemas logo nos primeiros dias. A Gabriela não mamava como devia, tinha dificuldades respiratórias e, possivelmente, não mexeria o braço direito. Foi internada no serviço de Neonatologia do Centro Hospitalar e Universitário de São João, por suspeita de Síndrome de Aspiração Meconial. Foi observada por vários dias por diferentes especialistas. Nessa altura, em que já era visível o estrabismo e o tórax para fora, a menina já demonstrava um grande risco de infecção, intolerância alimentar, anomalia congénita do sistema urinário, hipertrofia ventricular e havia a suspeita de um síndrome genético.

Foto: DR

Teria alta cerca de 20 dias depois. Foi com os pais para casa pela primeira vez. Depois de um mês em que pouco aumentou de peso foi a uma consulta de Doenças Hereditárias do Metabolismo. Chamou a atenção da médica a forma como se cansava a mamar no biberão e, com a colaboração da Cardiologia, foi-lhe detectado um derrame pericárdico volumoso.

A Gabriela foi novamente internada e fez duas pericardiocenteses, mas o derrame reaparecia. Acabou por ter de ser submetida a uma cirurgia, pioneira e com taxa de mortalidade elevada. “Tinha baixo peso e um sistema imunitário muito em baixo, mas tivemos de tomar essa decisão”, recordam os pais, que ficaram com o coração nas mãos e se refugiaram na fé, na capela do Hospital, esperando o melhor. “Quando o telefone tocou nem queria atender com medo”, diz Célia. Mas a menina, lutadora, saiu acordada da cirurgia e recuperou rápido do procedimento, contra todas as expectativas. Só que logo a seguir veio uma infecção. “Foi aí que os médicos nos disseram dêem-lhe muito colo e tirem muitas fotos que ela não vai sobreviver”, referem os pais que optaram por baptizá-la no Hospital a 6 de Julho.

Uma doença rara com apenas 70 casos em Portugal

Nessa altura as médicas já desconfiavam de uma doença rara, genética, que viria a ser confirmada. Chama-se Síndrome das CDG – Doenças Congénitas da Glicosilação. Trata-se de uma doença hereditária que afecta o processo através do qual as células humanas acumulam açúcares de cadeia longa que estão ligados a proteínas, gerando as glicoproteínas, necessárias ao crescimento e funcionamento normal de todos os tecidos e órgãos.

Sendo raras, estas doenças são complexas e de difícil diagnóstico. “É uma doença metabólica rara. Existem cerca de 70 casos em Portugal e mil no mundo identificados. É uma doença grave que afecta cada doente de forma diferente. Mas na Gabriela começou logo por um órgão principal, o coração”, explicam Célia e Luís.

“Quando havia a suspeita não queríamos acreditar. Só quando houve confirmação contamos às pessoas. Emocionalmente fomo-nos abaixo, pelo cansaço de estarmos ali dias e noites e sempre a ouvir más notícias. Praticamente vivíamos no Hospital”, lembram os pais.

Foram pesquisar. Encontraram pouca informação e sobretudo em inglês, língua que não dominavam. “O que líamos era assustador. Falavam em pouca esperança média de vida e que a maioria dos portadores não andavam”, contam. Como tinham familiares na Bélgica pediram-lhes para chegar à fala com o médico belga que descobriu estas doenças nos anos 80. Conseguiram. “Mas disse que não podia fazer nada. Que estava a ser bem acompanhada e que como não havia cura a solução era ir tratando os sintomas”, afirmam.

Foto: DR

Mas a pouco e pouco, com alguns contratempos pelo meio, a Gabriela foi tendo melhorias e acabou por ter alta a 16 de Agosto. Só que em casa os problemas também não paravam. Tinha hipotonia muscular, dificuldade em comer, muita diarreia e sempre problemas em vários órgãos, desde os rins ao fígado, descrevem. Veio com um cateter central e uma sonda nasogástrica para se alimentar.

A vida era passada em consultas, exames e terapias, numa vigilância permanente, que transformou os pais em médicos e enfermeiros. E, ainda em 2017, decidiram que um deles devia deixar de trabalhar.

Por questões financeiras, ele abandonou o cargo de assistente operacional numa junta de freguesia e ela manteve-se como empregada forense/jurista de um escritório.

“Ela pegou nela e ela partiu ao colo da mãe”

Apesar dos inúmeros internamentos, a Gabriela começava a brincar, a palrar e a tentar comer e dava esperança aos pais. Entre Fevereiro de 2018 e Janeiro de 2019 a menina nunca esteve internada. Tudo parecia estar a encarreirar-se. Só que apanhou uma gastroenterite e seguiu-se um internamento de um mês, com várias complicações pelo meio. “Mais uma vez os médicos não achavam que a Gabriela ia conseguir, mas ela resistiu”, dizem os pais com orgulho. Teve alta, mas havia de regressar em Maio com uma bronquiolite. Descobriram que tinha uma bactéria, a Klebsiella Pneumoniae (KPC), restrita a ambiente hospitalar que inibe a acção dos antibióticos.

Melhorou e voltou para casa, mas os pais achavam-na diferente. “Estava sempre muito branquinha, muito fria, muito apática, com a respiração alterada e tinha hematomas. Desde a bronquiolite nunca mais foi a Gabriela a que estávamos habituados. Mas não imaginávamos o que ia acontecer até ao desfecho final”, assumem Luís e Célia.

Apesar dos muitos cuidados, a 17 de Junho vomitou, o que era recorrente, mas dessa vez foi diferente. Estava com muita dificuldade em respirar e aflita. Os pais chamaram a emergência médica e a menina foi levada para as urgências de pediatria do CHUSJ. A primeira teoria é de que teria aspirado vómito para os pulmões. Só que, alguns exames mais tarde, percebeu-se que era um derrame no pulmão direito. “Um dos pulmões estava cheio de líquido”, recorda o pai.

As opções eram poucas. Tentaram drenar o líquido, mas como era gerado pela doença não tiveram sucesso. Os médicos começaram a dar morfina à Gabriela, para lhe tirar as dores. Os pais, que tinham casamento e baptizado (o segundo) marcado para 6 de Julho cancelaram tudo.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

A 28 de Junho a menina deu sinais de melhoria. Ouviu músicas no telemóvel e sorriu. Mas nessa noite surgiu uma febre do sistema nervoso central. O corpo não resistia à medicação e as médicas adoptaram medidas paliativas. “Era angustiante ver a menina assim e ninguém fazer nada. Um sentimento de impotência e de revolta”, admitem. Os pais mantinham a esperança de que, à semelhança do que tinha acontecido noutras situações a Gabriela ia resistir e dar a volta à situação.

Até que no dia 21 de Julho, quando a menina já demonstrava vários problemas e o pai se preparava para vir embora à noite, perguntaram-lhe se queria ficar. “Disseram que a Gabriela estava por horas”, diz a mãe com as lágrimas a cair. “Ela pegou nela e ela partiu ao colo da mãe”, acrescenta o pai.

“Eu não tenho de deixar de falar da minha filha. Eu não fui mãe. Eu sou mãe”

Para estes pais, que já tinham vivido um luto pela filha idealizada que não tiveram e que passaram por um período primeiro de negação e depois de aceitação da doença, este momento não deixou de ser de choque e de incompreensão.

“Não se resiste à morte de um filho. Sobrevive-se porque tem de ser. Mas é difícil levantar todos os dias e há alguns em que é impossível fazer as tarefas mais banais. Hoje [no dia em que fizemos esta entrevista] estava a trabalhar e comecei a chorar, porque tenho saudades”, resume Célia Marques. “É uma parte de nós e é como se naquele dia o nosso coração também parasse, ou parte dele. Era a nossa primeira filha e tudo se centrou nela e, de repente, ficamos só os dois”, acrescenta. Literalmente, só os dois, porque a maioria das pessoas afastou-se deles, lamentam.

“As pessoas têm medo de se aproximar. Sei que não sabem o que dizer, mas isto faz-nos sentir ignorados e desprezados. Nem precisam de dizer nada. Basta um abraço e estar connosco”, salientam Célia e Luís. E essa situação é transversal, desde a família, aos amigos e colegas.

“Tudo quando nós precisávamos de amor, de respeito, de compreensão. Estamos a viver a maior dor que existe”, garantem estes pais.

Estão ambos a ser acompanhados por psicólogos e participam num encontro mensal de uma associação em que se juntam a outros pais em luto. “Nós sentimo-nos sozinhos no mundo e incompreendidos. E todos os pais que vão lá sentem o mesmo”, referem.

“A maior parte das pessoas não percebe a nossa dor. Eu não tenho de deixar de falar da minha filha. Eu não fui mãe. Eu sou mãe. Mas quando começamos a tentar falar as pessoas ignoram-nos ou mudam de assunto. A dor está ali e nunca se esquece”, garante Célia.

Os dois passaram de uma vida com muito para fazer para uma vida em que têm demasiado tempo para pensar.

Célia já regressou ao trabalho, este mês, mas não tem sido fácil. “Há dias em que engulo as lágrimas e só as deito cá para fora quando chego a casa, ou no carro. Ouço as pessoas a falar dos filhos delas e também queria a minha”, lamenta. Luís ainda está em casa, sem trabalho, embora ande à procura. E perde-se nas fotografias e vídeos em busca da Gabriela.

A vontade e o medo de ter outro filho

Nos planos de Célia e Luís os sonhos sempre passaram por ter dois filhos. Mas tudo o que aconteceu criou neles receio.

“Por ser uma doença genética corremos o risco de isto se repetir. Há uma probabilidade de 25% de um outro filho vir a ter o mesmo. Nós temos ambos o gene com alterações, somos portadores”, explicam.

Vão ter uma consulta de genética, para aconselhamento, mas não escondem a dualidade de sentimentos. Sobretudo porque um outro filho que venha nunca vai substituir a Gabriela. “O facto de ela ser especial tornou-a única”, dizem.

Depois ainda os baralha a ideia de uma fertilização in vitro e manipulação para que o bebé não tenhas estes genes ou de engravidarem naturalmente e fazer um teste nas primeiras semanas para ver se existe a doença. “E depois? Ficamos nós com a decisão nas mãos?”, perguntam.

“Temos um vazio a preencher, que nunca vai ficar preenchido, mas que pode amenizar, e o medo de que tudo volte a acontecer”, assumem estes pais.

Célia e Luís podiam fechar-se em copas e viver o luto em silêncio. Não o quiseram, embora tenham formas distintas de tentar ultrapassar a dor. Criaram uma página nas redes sociais de homenagem à filha onde partilham a sua história e tentam dar a conhecer esta doença rara e falar do luto parental.

Foto: DR

“Os pais que têm filhos especiais acabam por ver a vida e os problemas de outra maneira. A maioria dos casais que enfrentam isto separam-se. A Gabriela veio unir-nos mais. Queremos ajudar outros pais com outros bebés especiais que se possam identificar com a sua história”, adiantam. Fazê-los perceber que não estão sozinhos.

A perda ainda está muito presente e, actualmente, ainda é mais fácil ver as partes más. Mas “a Gabriela teve bons momentos”. “Ela adorava que eu fosse palhaça, punha a música do Panda e ela começava a rir. Nós sabíamos o que ela queria só com o olhar. Havia uma cumplicidade muito grande entre nós. Durante dois anos ela foi a nossa razão de viver”, realçam.

A quem pensa ter filhos deixam um conselho, que façam testes de diagnóstico, sobretudo se tiverem casos de problemas genéticos já identificados já na família. “Que não achem que só acontece aos outros”, dizem.

Quanto a eles vão continuar a manter a Gabriela por perto. “Acreditamos que há mais alguma coisa além deste mundo. É isso que nos dá alguma paz e nos faz levantar todos os dias. Achamos que nos vamos reencontrar”, concluem.