A violência vem de trás, mas agudizou-se recentemente quando a câmara de Charlottesville (no Estado de Virginia, EUA) decidiu remover o monumento ao General Robert E. Lee, por ele ter lutado na guerra civil americana pelo lado confederado. Um grupo de nacionalistas brancos saiu à rua a contestar. Foi-lhe ao encontro uma contra-manifestação e, no enfrentamento, morreu mais uma pessoa. Foi este o ponto de partida de outra reacção exaltada à conta da qual já voaram bastantes outras estátuas dos seus pedestais e há planos para retirar mais 720, no conjunto dos EUA.
Duas das estátuas voadoras são de Roger Brooke Taney, primeiro uma em Baltimore e, dois dias depois, outra em Annapolis, ambas no Estado de Maryland. Em ambos os casos, a operação decorreu literalmente do dia para a noite. Em Annapolis, capital do Estado, eram precisamente as 2 horas da madrugada de quinta para sexta-feira (18 de Agosto de 2017). Para não perderem tempo a reunir-se, os membros do executivo estadual votaram por correio electrónico, de modo que foi só chamar o guindaste e esperar pela noite, para evitar perturbações da ordem pública.
Será que alguém aprende a lição?
Recordemos quem foi este Roger Brooke Taney, porque é que lhe erigiram estátuas e o que ele fez de mal.
Roger Taney foi um funcionário político e depois um magistrado com prestígio em meados do século XIX. Embora se soubesse que era católico, fez parte do gabinete do Presidente dos EUA, foi Secretário da Guerra e Secretário do Tesouro. Foi o primeiro católico a desempenhar cargos de responsabilidade e, durante muitos anos, o único. Em 1836, bateu um recorde semelhante, como primeiro católico eleito Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.
Foi nesta função que lhe incumbiu, em 1857, ser o redactor da sentença «Dred Scott», aprovada por 7 dos 9 juízes do Supremo Tribunal. É daqui que vem toda a animosidade contra Roger Taney, ainda que não imediatamente, porque a generalidade dos juristas da época concordava com ele, como se depreende da esmagadora maioria que votou a sentença. Depois da sua morte, Taney teve mais de um século para ser lembrado como ilustre e para lhe erguerem estátuas. Até que passaram 160 anos e as coisas mudaram.
Dred Scott e a mulher eram escravos que reclamavam o direito à liberdade e a sentença do Supremo interpretou a lei em sentido desfavorável. Taney opunha-se pessoalmente à escravatura, que considerava «uma mancha no carácter da América», e no início da carreira tinha libertado todos os seus escravos. Além disso, era pró-unionista, contra os confederados. Contudo, contra a sua convicção pessoal, Roger Taney declarou que a Constituição norte-americana não protegia os negros. O acórdão pergunta-se retoricamente se os negros podem ser cidadãos e responde. «Pensamos que não, porque isso não vem na Constituição e, na altura, a palavra “cidadão” não pretendia incluir os negros. (…) Pelo contrário, na época eles eram considerados subordinados e seres de classe inferior, que tinham sido subjugados pela raça dominante».
Isto foi escrito em meados do século XIX?! É tão parecido com os acórdãos do Tribunal Constitucional de Portugal e de tantos países!
A Constituição defende a absoluta inviolabilidade da vida humana… mas os bebés antes de nascerem não são humanos; …e as pessoas doentes também não; …nem os idosos. A Constituição fala do casamento… mas, se a palavra significar outra coisa, mesmo intrinsecamente estéril? A Constituição fala na liberdade de educação e proíbe o Estado de tomar posição a favor de qualquer doutrina …mas quem duvida que a opinião do Ministério é a única certa?! A Constituição reconhece o direito a conhecer os próprios pais …mas a PMA proíbe que a criança saiba quem é o pai, para ter o direito a saber que tem duas mães. Além disso, entre o conceito de pai e de mãe há tantos géneros…
Durante algum tempo, as ideologias conseguem impor as coisas mais estapafúrdias. Parece que não há limite, com a ajuda de uns juristas de formação positivista, que vão para além do imaginável, incluindo as próprias convicções morais. Até que chega o momento exaltado em que as lindas estátuas voam, do dia para a noite.