Onde estávamos há um ano? Qual foi a última coisa que fizemos na antiga normalidade dos dias? A pandemia mudou os hábitos de todos os portugueses e cidadãos do mundo. Muitos de nós dependemos do digital para trabalhar e assistimos cada vez mais à aceleração da era da transformação digital. O ser humano adapta-se à mudança e sempre encontrou formas extraordinariamente criativas de superar os piores obstáculos, transformando-os em oportunidades.
Onde estaremos daqui a um ano? Teremos a mesma profissão? Teremos as mesmas conexões? Há uns tempos, tive a oportunidade de visualizar um vídeo a explicar o fenómeno do Tik Tok e a sua popularidade entre os adolescentes e jovens adultos. A verdade é que as coisas nascem fora do nosso alcance de perceção e, antes que tenhamos noção delas, já conquistaram o mundo. A isso dá-se o nome de blitzkrieg cultural. Todas as épocas apresentam desafios únicos e particulares. São melhores numas coisas e piores noutras.
Faz parte da humanidade (e da Natureza) a submissão à mudança e à adaptação, pelo que são mecanismos de evolução naturais e incontornáveis. Por outro lado, o progresso tem de ser equilibrado com algum conservadorismo, porque o que funcionava antes pode não continuar a funcionar – mudar por mudar também não faz sentido e resulta muitas das vezes em retrocesso. A vida não é assim tão linear e, na verdade, isso é o que apimenta esta aventura que é estar vivo nos sapatos de um ser consciente como é o ser humano.
É muito fácil, num mundo globalizado, sentirmo-nos ameaçados e encurralados. Para todos os efeitos, já não conseguimos ser “os melhores” pelo que competimos num mercado global. Na realidade, em muitos aspetos, e sem sabermos, as “nossas” ideias já foram pensadas por alguém no Bangladesh ou noutro canto do planeta.
Há quem defenda que a informação deveria ser o mais curta possível e, também, mais rápida. Eu creio que está eminente o revivalismo do longo formato porque as pessoas também desejam envolver-se de forma mais íntima e prolongada com outras pessoas e ideias. Por isso – devemos questionar-nos e sermos curiosos, mas não nos deixemos ficar avassalados pelas coisas – pelo menos não já, enquanto somos jovens – abraçar a mudança e tentar aplicar aquilo que de original podemos trazer para o mundo. Ficar desatualizado e ignorante é normal e, para todos os efeitos, necessário. É como ter todos os lápis de cor do mundo para pintar ou ter apenas dois ou três – porque quando balizamos os recursos, o potencial para a criação pode ser mais simples de atingir. As fake news vivem à vontade em soundbites e notícias curtas passíveis de múltiplas interpretações e cruzamentos inesperados. Mas quando temos entrevistas de 3 horas de forma ininterrupta, conseguimos chegar a uma ideia de forma muito mais íntima e sustentada, e mais livre de segundas interpretações. Este “bombardeamento” de informação não convida à reflexão e à contemplação, mas ao processamento, julgamento e ação espontânea. Como é espontâneo, é muito emocional – e isso leva ao partidarismo e à polarização. Por isso, o zeitgeist coaduna-se bem com a forma como temos vindo a trabalhar a informação e a apoiarmo-nos na tecnologia.
Li algures um autor que explicava o porquê de encontrarmos prazer e atração no ato de “domar” o “animal” do outro. Em outras palavras, porque procuramos desafios reais nas relações.
Embora os exemplos que o autor dá sejam muito mais aplicáveis à relação mulher-homem do que o contrário, dando a ilustração dos arquétipos presentes na história da Bela e o Monstro, aplica-se metaforicamente aos dias de hoje e à comunicação. Às vezes não é uma questão do outro ser explicitamente “bruto” e querermos “domá-lo” – vejamos isso como uma metáfora. Com a chegada da pandemia, começamos a sentir necessidade de nos aproximarmos do outro, de nos relacionarmos e de sermos mais humanos, compassivos… porque essa é a maior das proibições – a proximidade, o toque, o abraço, o beijo. Esse fora o desafio que cada um de nós teve para “domar” nas relações pessoais. Comunicações “brutas” e inacabadas, as palavras que se escondiam por detrás de uma máscara de proteção – acessório esse, que por sua vez, escondia também totalmente a linguagem não verbal que tantas vezes, em silêncio, dizia tudo – o sorriso, ou a ausência do mesmo. É como se o caos (inacabado) por um lado – trouxesse a sua oportunidade de visão positiva para umas coisas, mas precisasse sempre de algumas “alterações” e ajustamentos no geral. É fantástico entender como um exemplo sobre uma necessidade tão primária consegue ser usado como metáfora para tudo na vida.
Em contrapartida, as pessoas “espiam-se, controlam-se umas às outras; não dialogam, disputam-se, e a convivência é uma osmose do mesmo ao mesmo, sem enriquecimento mútuo, que nunca um português confessará que aprendeu alguma coisa de um outro, a menos que seja pai ou mãe”, escreveu um dia Eduardo Lourenço. Por um lado, os pais pertencem a uma geração sobrecarregada de exigência – eles próprios estão overwhelmed com tudo – pelo que o tempo para a educação de detalhe é reduzido. A pandemia trouxe o teletrabalho, que desvia o foco da atenção dos pais – em casa – dos filhos para o trabalho. Trouxe a escola virtual, que desvia a atenção dos mais novos para o digital e redes sociais. Enquanto as crianças dos anos 80 e 90 tinham a televisão como escape, agora é o far-west dos princípios. O cansaço e a fadiga torna fácil remeter as crianças para os telemóveis e, por consequência, para os influenciadores digitais, afastando-os dos livros e da cultura.
Há muita coisa que podemos mudar (spoiler alert: nunca vamos parar de o fazer). A pandemia significou caos, mas também pôde significar ordem para os que souberam reorganizar-se perante as adversidades. Não se recuperam as vidas, nem se recupera a saúde. Mas nunca nenhum ano como o de 2020 teve os conceitos de “resiliência” e “superação” tão enraizados em cada cidadão do mundo – empresários, estudantes, desempregados, diretores, pessoas à procura do primeiro emprego, pais, mães, famílias. Tudo o que podemos mudar, por muito duras que sejam as circunstâncias, está no que nós conseguimos perceber e no que os outros não só conseguem identificar, como têm a coragem e se dão ao trabalho de nos dizer. Somos todos mestres e discípulos à nossa maneira. Somos todos sábios e simultaneamente ignorantes.
O final de 2020 e início de 2021 pode significar mudança e precisa de significar adaptação – um Natal diferente, um novo ano de consciencialização e desafio, mas de igual modo associado ao conceito tradicional de família: “é pelo amor à família que não abraço, que não beijo, que não estou presente”; “é pelo amor à família, que adio este ano, para que nos próximos anos haja Natal”; “é para que continuemos juntos, que estamos neste momento estamos afastados”.
Um dia, disseram-me: Todos somos o somatório da manta de retalhos que é a herança individual, de quem passa por nós, passando depois a sermos um “coletivo”. Esse coletivo não deixou de ser construído por força de uma pandemia que nos proíbe de nos tocarmos, que veio banir o beijo, o abraço, o simples aperto de mão e mesmo o sorriso… Nós somos as pessoas, e neste momento quem me lê já é um pouco de mim e eu… um pouco de quem me lê; porque de tudo o que somos, fazemos e construímos, fica apenas o que damos – e eu acredito que isso se chame Herança Cultural. E isso, teremos sempre. No Natal e em qualquer época… num 2020 mau, e na crença de um 2021 melhor… com ou sem pandemia.
Ema da Assunção Pereira
Licenciada em Ciências da Comunicação, Mestre em Marketing e Pós-Graduada Marketing Digital