Num ciclo dedicado a Charlie Chaplin, o teatro da Ribeira Grande projectou no dia 19 o filme «Tempos Modernos» (no original, «Modern Times»). Estão de parabéns a Câmara, pelo apoio, Judite Barros pela programação e Pedro Medeiros pela interessante nota cinéfila, na qual se apoia este meu texto.
Um dia, mandaram o jovem Charlie Chaplin ir ao armário do estúdio e servir-se de qualquer coisa divertida. Escolheu umas calças largas, fora de medida, um casaco minúsculo, um pequeno chapéu de coco e um enorme par de sapatos, para que tudo fosse contraditório. A rematar, um bigodinho cómico e uma bengala empunhada como um brinquedo. Quando apareceu vestido daquela maneira, houve entusiasmo entre o pessoal do estúdio e o realizador aprovou imediatamente a personagem. Assim nasceu o «tramp» (vagabundo, em inglês), que os franceses popularizaram como «Charlot».
Estávamos nos alvores do século XX, ainda no tempo do cinema mudo, a preto e branco, com imagens a sacudir-se no «écran». O cinema era sobretudo simbólico, gestual e, como nos «tweets» de hoje em dia, não havia lugar para grandes considerações. O humor era imediato: a personagem era cómica, ou não havia enredo que lhe valesse.
O vagabundo criado por Charlie Chaplin era um palhaço pobre do circo, acelerado com imaginação delirante até um ritmo vertiginoso. O vagabundo tropeçava, com isso escapava do ataque do mau, que derrubava uma escada, que fazia cair uma lata, que sujava o chefe, que se queria vingar no vagabundo, que voltava a tropeçar distraído com a menina, atingindo sem querer o mau, que desfecha um golpe terrível em plena careca do chefe, enquanto o vagabundo se enamora, cada vez mais, a olhar para a menina… Algo parecido podia acontecer no teatro, embora só o cinema conseguisse produzir um sobressalto sem fim, àquela velocidade. As audiências riam sem se conterem e a mudança para os Estados Unidos consagrou Chaplin como estrela mundial.
O sonoro pregou rasteiras aos actores do cinema mudo, incluindo Chaplin, que falava com um sotaque britânico, insólito para o público norte-americano. Resiste alguns anos, até 1936, em que o vagabundo mudo aparece pela derradeira vez no filme «Tempos Modernos».
A repetição exaustiva das linhas de montagem inspirou esta caricatura hilariante, em que Chaplin contracena com gigantescas máquinas imparáveis, entra dentro delas, tenta controlá-las, corre perigos que assustam o espectador, até que finalmente não consegue evitar que a cadência desvairada do automatismo provoque tragédias em cadeia. A polícia, o capataz, a confusão e complexidade da estrutura de produção associam o cómico e o trágico. Porque o contraponto do ridículo divertido é a melancolia de um ser inadaptado, vítima de uma estrutura absurda, um vagabundo sem nome. Os franceses chamaram-lhe Charlot, mas no original é apenas o «tramp», o vagabundo. E a única pessoa que o compreende, e por quem ele se apaixona, é uma rapariga sem nome, a «gamine», a miúda. Rejeitados pela sociedade, não têm nome, nem casa, nem nada, a não ser um coração triste, que enternece o espectador.
Paradoxalmente, o pobre vagabundo, incompreendido e rejeitado, fez de Chaplin um homem rico, um nome reconhecido em todo o mundo, «superstar» na América, «Sir Chaplin» no Reino Unido, «Knight Commander of the Most Excellent Order of the British Empire» (Cavaleiro-chefe da mais Ilustre Ordem do Império Britânico).
Hoje, que as modernices de 1930 estão ultrapassadas, temos a vantagem da perspectiva: não foi o progresso tecnológico que triturou vidas humanas, como acontece simbolicamente em «Tempos Modernos». A visão de Chaplin, corrosiva, altamente crítica do progresso, é bem diferente do diagnóstico do Papa Francisco: «Alguns crêem-se livres quando caminham à margem de Deus, sem se dar conta de que ficam existencialmente órfãos, desamparados, sem um lar para onde possam voltar. Deixam de ser peregrinos para se transformarem em errantes» («Evangelii gaudium», 170). Entre o peregrino e o vagabundo há uma diferença fundamental. Nestes dias, Francisco repetiu aos chilenos e aos peruanos que têm uma Mãe, uma casa, uma família, que têm um nome; Charlot representa quase o oposto, a desolação rancorosa, próxima do marxismo.
«Tempos Modernos» é uma obra-prima do cinema a lembrar-nos – pela força do contraste – que o capitalismo e marxismo não servem. Neles, pode haver humor, mas falta alegria. Até no sofrimento, o peregrino é iluminado pela esperança e pela alegria, enquanto, até no humor, o vagabundo está pleno de sabor amargo.