Meu caro São Lucas

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Fernando Sena EstevesCelebrou-se há dias a tua festa e lembrei-me de te agradecer o excelente trabalho que realizaste ao escrever o teu Evangelho e os Atos dos Apóstolos. Se nestes estiveste presente em muito do que lá descreves, já para o teu Evangelho, como tu próprio dizes ao “excelentíssimo Teófilo”, escreves depois de ter investigado tudo cuidadosamente desde o princípio. De entre todas as testemunhas oculares de que te socorreste, sobressai a Virgem Maria que te acolheu como a um filho querido e te contou os acontecimentos da infância de Jesus. Só desse modo poderias ter sabido que Maria conservava todas estas coisas, meditando-as no seu coração. Assim o referes duas vezes: quando os pastores vieram adorar o Menino recém-nascido e no reencontro em Jerusalém onde  icara sozinho quando tinha 12 anos sem os pais saberem. O cardeal Luciani, que veio a ser o papa João Paulo I, escreveu uns deliciosos textos sob o título “Ilustríssimos senhores”, onde se inclui uma carta que te dirige e onde diz a certa altura: “És o único que nos oferece um relato do nascimento e infância de Cristo, cuja leitura escutamos sempre com renovada emoção no Natal. Há, sobretudo, uma frase tua que me chama a atenção: …e o enfaixou e reclinou numa manjedoura. Esta frase deu origem a todos os presépios do mundo e a milhares de quadros preciosos”. Por tudo isto te deram o título de Pintor da Virgem, e há mesmo quem afirme teres de facto pintado quadros seus.

Se não foste realmente pintor, eras médico e sobretudo um excelente escritor, como dizem os entendidos no Grego, que referem como exemplo o relato dos discípulos que caminhavam para Emaús desanimados pela morte de Jesus que se põe a acompanhá-los, sem que eles O reconheçam, e lhes explica a razão de ser do que aconteceu já previsto nas Escrituras. Ou então o naufrágio do barco em que seguias com S. Paulo que ia a caminho de Roma para ser julgado como cidadão romano por ter apelado a César após as acusações de que fora alvo por parte dos judeus. A descrição que fizeste desse naufrágio na ilha de Malta é considerado um dos mais notáveis documentos das antigas navegações marítimas.

A proposito do teu Grego, há um parecer interessante de um especialista na matéria. Trata-se de D. António Couto, bispo de Lamego, que julga ter-se traduzido mal a passagem em que contas ter Maria e José recorrido a um estábulo de animais por não haver lugar para eles na “hospedaria”. Entende que a palavra original corresponde a “sala” e não a “hospedaria”; tanto assim que na parábola do bom samaritano, este deixa o paciente para ser cuidado na “hospedaria” propriamente dita com palavra diferente da referida acima. Sendo assim, era natural que a “sala” da hospedaria, certamente com muitas pessoas que lá se encontrariam, não era um lugar próprio para o nascimento de Jesus e daí o recurso ao estábulo, provavelmente uma dependência da própria hospedaria.

Os Evangelhos de S. Mateus e o de S. Marcos, juntamente com o teu, são chanados de “sinópticos” por serem muito semelhantes na estrutura e conteúdo, por comparação ao de S. João, muito diferente. No entanto, todos têm partes que não aparecem em mais nenhum. É o caso dos Magos do oriente e da fuga da Sagrada Família para o Egito, só de S.Mateus. Quanto a S. Marcos, é o único que refere o jovem que veio enrolado num lençol ver o que se passava no Jardim das Oliveiras quando Jesus era aprisionado e que às tantas largou o lençol e fugiu despido: o jovem seria o próprio evangelista.

No que te diz respeito, tens vários relatos que mais ninguém recolheu e que manifestam de modo impressionante a misericórdia de Jesus para com os pecadores. Além da parábola do bom samaritano, tens a do filho pródigo, a conversão de Zaqueu e a da mulher pecadora que lhe lava os pés com as lágrimas durante uma refeição. Também só tu referes o olhar de Jesus que suscitou o arrependimento de S. Pedro depois das suas negações, o seu pedido ao Pai para que perdoasse aos algozes que O martirizavam e ainda a promessa da salvação ao bom ladrão arrependido.

Termino agradecendo-te mais uma vez pelo que nos escreveste e peço a tua intercessão para nos ajudares a ler – melhor, a viver – os teus escritos e nos tornemos mais… Teófilos, mais amigos de Deus.