O capacete do Eng. Perestrello

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A maior parte das histórias que conheço da vida profissional do meu Pai foram-me contadas por outros, mas ele abria excepções a esta reserva quando não era o protagonista, ou quando se via como testemunha passiva dos acontecimentos. Foi assim que conheci, através dele, a história dos capacetes.

O assunto era muito importante para o meu Pai, empenhado em promover a segurança dos operários nos estaleiros navais de Lisboa. Uma das suas iniciativas foi comprar capacetes de protecção e pedir aos Directores de cada Departamento que os distribuíssem ao pessoal. A seguir, visitou cada zona de trabalho para verificar se as instruções estavam a ser cumpridas. Infelizmente, em toda a parte estava montada uma autêntica «guerra civil». De um lado, os trabalhadores queixavam-se de que era impossível trabalhar com capacete, de que os capacetes faziam mal à saúde e até criavam situações de perigo. Do outro lado, os Directores não cediam no uso obrigatório dos capacetes ainda que, na melhor das hipóteses, só conseguissem vitórias momentâneas, que não duravam mais do que o tempo de eles virarem as costas. A guerra ainda não tinha começado no Departamento do Eng. Perestrello, porque ele, em vez de distribuir imediatamente os capacetes, seguiu outra estratégia.

Vale a pena apresentar brevemente o Eng. Perestrello. Embora eu não o tenha conhecido directamente, ouvi testemunhos. Era um homem alto, elegante. Herdara da sua família ilustre um certo toque de classe, ainda que ele fosse tão acessível e natural que o relacionamento era descontraído e agradável, sem se notarem as diferenças hierárquicas. Apreciava cada pessoa, gostava de conversar e de conviver, e toda a equipa, desde os operários aos engenheiros e aos colegas da Direcção, reconhecia a sua liderança. Chegaria a ser o Administrador-Delegado do estaleiro da Lisnave.

Como disse, quando recebeu instruções para distribuir os capacetes, o Eng. Perestrello não se apressou. Começou por reunir a Direcção e os engenheiros e combinar que eles próprios passariam a usar capacete. No dia seguinte, mal desceu às oficinas, com o seu capacete, foram os operários que se dirigiram a ele e lhe pediram para também receberem capacetes: «se os Directores e os engenheiros usam capacete, muito mais se justifica essa protecção para quem trabalha nas oficinas». Não foram precisos muitos argumentos para o convencer e rapidamente se contabilizou e se distribuiu o número de capacetes necessários.

Nos outros departamentos, a tensão da «guerra dos capacetes» arrastou-se por mais tempo e a melhoria das condições de segurança no estaleiro, neste domínio e noutros, exigiu um esforço enorme e persistente. Só no departamento do Eng. Perestrello as coisas eram diferentes. Aí – contava o meu Pai –, os operários almoçavam de capacete na cabeça.

As máscaras faciais, as viseiras e todas as regras de segurança que as autoridades estabeleceram para o actual tempo de pandemia recordam-me os capacetes do estaleiro naval nos anos sessenta. Algumas pessoas sentem verdadeira repugnância em cumprir as regras e estão convencidas de que as exigências são inúteis, ou até prejudiciais. Sobretudo quando o Governo, ou até as autoridades eclesiásticas, dão directivas concretas em relação às igrejas e às cerimónias religiosas, ferve-lhes o sangue de indignação pelo desprezo das coisas de Deus e o desrespeito pela liberdade fundamental de Lhe prestar culto. Realmente, a obediência é uma virtude difícil quando choca com o nosso ponto de vista.

Talvez uns líderes tenham mais jeito que outros para facilitar a obediência. Em todo o caso, é interessante reparar como – dependendo da perspectiva com que vemos as situações – a mesma coisa nos parece intolerável ou a consideramos um direito honrosamente conquistado.

Talvez a obediência mais custosa tenha mais mérito e dê mais alegria a Deus. Ainda que talvez, com alguma distância emocional, acabemos por reconhecer que «não era caso para tanto».