Paixão. É essa a palavra usada em Sobrado para descrever uma tradição com centenas de anos. Uma paixão que ninguém consegue colocar por palavras mas que, ano após ano, une uma comunidade em torno do evento maior daquela terra do concelho de Valongo.
Em breve, no dia 24 de Junho, dois “exércitos” – um composto por cerca de 40 homens solteiros, sisudos e aprumados, que marcham a toque ritmado de tambor e caixa; outro feito de centenas de novos e velhos, solteiros e casados, sobretudo homens, que dançam, saltam e gritam de alegria – vão voltar a defrontar-se numa “batalha” pela imagem milagrosa de S. João que tem como epicentro o Largo do Passal.
Os “capitães” destes exércitos já estão há muito escolhidos. José Manuel Gaspar, de 27 anos, agente da PSP, será o Reimoeiro, que comanda os Mourisqueiros; e Paulo Dias, de 46 anos, marceneiro, será o Velho da Bugiada e liderará os Bugios. São ambos da terra e não escondem que estão a cumprir um sonho.
Todos os anos as Bugiadas e Mouriscadas, integradas nas Festas de São João de Sobrado, juntam milhares de pessoas nas ruas da localidade. Nas últimas semanas têm sido feitos já ensaios regulares para que nada falhe.
“Temos uma população que não chega aos 10 mil habitantes e temos cerca de mil pessoas, cerca de 10% da população, que participam activamente no dia da festa”
Uma vez por ano, as ruas de Sobrado transformam-se e enchem-se de gente para assistir àquela que é considerada uma das maiores e mais genuínas tradições no país.
As lutas entre Bugios (Cristãos) e Mourisqueiros (Mouros), pela posse de uma imagem milagrosa de São João Baptista, duram todo o dia tendo como momentos mais altos a Dança de Entrada e a Prisão do Velho. As Bugiadas e Mouriscadas estão já classificadas como Património Cultural Imaterial de Interesse Municipal e decorre um processo para que a festividade seja inscrita no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial e lista representativa do património imaterial da humanidade da Unesco.
O dia 24 de Junho é o ponto alto da festa, mas até lá há muito trabalho a fazer. Todos os anos, uma comissão de festas, com dezenas de mordomos, tem que angariar os fundos para garantir as festividades, não só no que diz respeito à Bugiada e Mouriscada, mas também para o arraial popular, com os concertos e fogos-de-artifício.
Pedro Vale é um dos cerca de 40 mordomos que integra a Comissão de Festas de São João de Sobrado deste ano. Não é a primeira vez e também ele já vestiu a pele de Reimoeiro no passado. Nos últimos anos, com a crise, os patrocínios diminuíram e coube às comissões de festas arranjar alternativas, explica. “Há alguns anos atrás bastavam os patrocínios e os cartões de sorteio que se passavam, a sarrabulhada, um grande evento típico, e o peditório. Neste momento fazem-se estas quatro coisas mas existem ainda muitos mais eventos para ir buscar dinheiro, sobretudo eventos fora, para não sobrecarregar tanto a freguesia”, diz. O orçamento anual das festas ronda os 100 mil euros. Sobrado tem cerca de 10 mil habitantes.
Por isso, ser mordomo actualmente exige muito tempo e amor à camisola. “40 pessoas parece muito, mas já fizemos uma festa que durou uma semana e em que éramos 30 pessoas a trabalhar todos os dias, quando todos temos empregos. Nós pagamos para trabalhar”, confessa.
Mas não é só a comissão de festas que trabalha, toda a localidade se mobiliza. “Temos uma população que não chega aos 10 mil habitantes e temos cerca de mil pessoas – 600 a 800 Bugios, 50 Mourisqueiros e depois nas outras partes da festa -, cerca de 10% da população, que participam activamente no dia da festa. Mas ao longo do ano a população ajuda na reunião de fundos”, salienta.
“Se queremos trazer cá as pessoas elas têm que perceber o que vêm cá ver. Tudo tem um sentido e um significado”
A Bugiada e a Mouriscada é a parte mais visível das festividades e aquilo que move a população, assume Pedro Vale.
No início, a festa era frequentada principalmente por habitantes da freguesia e redondezas e alguns emigrados. “Agora vê-se cada vez mais pessoas de outras zonas que não têm qualquer relação com a nossa área geográfica ou relações familiares que vêm cá”, refere.
Querem mais visitantes? Querem, mas sem comprometer o evento. “A verdade é que somos uma terra muito pequena e o nosso espaço é limitado, um aumento bruto do número de visitantes penso que seria contraproducente. Para fazermos as danças precisamos de espaço e se houver excesso de pessoas isso vai-nos condicionar. Não podemos ‘vender’ a festa aos de fora comprometendo o que é nosso”, acredita o sobradense.
Sobretudo, defende o mordomo, é preciso arranjar forma de explicar o que se passa a quem está a assistir. “Os movimentos que parecem aleatórios têm um significado. E se as pessoas que estão a ver não perceberem esse significado a primeira dança vai ser igual à seguinte. O contexto, a história, o porquê de se estar a fazer é muito importante”, garante, não escondendo que é difícil explicar a tradição a quem vem de fora. “Se queremos trazer cá as pessoas elas têm que perceber o que vêm cá ver. Se não somos um grupo de pessoas aos saltos com cores e com guizos, sem sentido. E tudo tem um sentido e um significado”, argumenta Pedro Vale. “Temos que passar para a fase seguinte. É um trabalho que está a ser feito, mas ainda há um longo caminho a percorrer”, acrescenta.
Para este mordomo as Bugiadas e Mouriscadas só se definem de uma forma: “Temos uma palavra que define a festa que é a paixão. Não me peça para definir paixão. Aqui a paixão é estar doente e ir na mesma. É como eu, em 2006, ter partido as duas mãos e ter ido com a espada amarrada à mão. É ter um familiar que falece e nós irmos de Bugio ou Mourisqueiro na mesma. Dizer que isto é um teatro é ofensivo para nós, para nós isto é a nossa vivência, é paixão”, resume.
“Já aconteceu vários Reimoeiros adiarem os casamentos para mais tarde porque não abdicam de ir de Rei”
É essa paixão que faz com que, ano após ano, os mesmos elementos integrem a festa. É o que acontece com o Reimoeiro e o Velho da Bugiada escolhidos para 2018, ambos experientes nestas andanças.
O Rei dos Mouros será José Manuel Gaspar, agente da PSP com 27 anos. Caberá a ele liderar os Mourisqueiros, um grupo de cerca de 40 elementos, todos rapazes solteiros, que efectuam danças como se marchassem, com rigor marcial e ao som de tambores e caixa.
Foi desde pequeno que foi levado para a festa. Ainda chegou a ir de Bugio, levado pelo padrinho, mas acabou por se juntar aos Mourisqueiros mal teve idade suficiente. “Mudam as caras, mas a tradição mantém-se sempre igual”, garante o natural de Sobrado. “Ser Reimoeiro foi sempre o meu objectivo, acho que é o objectivo não sei se de todos mas da maior parte dos que integram os Mourisqueiros, chegar a rei”, afirma. Não esconde que está ansioso e sente o peso da responsabilidade. “Já vou há 15 anos de Mourisqueiro, mas isto é totalmente diferente”, conta.
Entra na batalha sabendo que será derrotado. Ainda assim, diz que isso é o que menos importa. “O Reimoeiro é o chefe do exército mouro, é o mau da história, por isso, no fim perdemos, já faz parte da tradição. Temos que escolher um lado, um deles não é tão alegre no fim, mas a vontade e a paixão é a mesma dos dois lados”, sustenta José.
Nas suas linhas estarão apenas homens e rapazes solteiros, o que já criou alguns dissabores a namoradas e noivas. “Acontece muitas vezes terem que adiar casamentos. Quem não gosta muito disso são as mulheres que estão à espera. Mas já aconteceu vários Reimoeiros adiarem os casamentos para mais tarde porque não abdicam de ir de Rei. Se a minha namorada quisesse casar eu também não ia abdicar de ir de Rei para casar”, confessa. “Só quem é de cá da terra é que sabe o gosto que é fazer parte da festa. É um sonho tornado realidade”, garante.
Segundo o agente da PSP, que também é mordomo, a festa ganhou outras dimensões nos últimos anos, graças a uma maior divulgação, algo que considera bom para Sobrado.
“Tem que ser paixão. Alguém que venha de fora e diga vou de Bugio por ir, na Dança de Entrada se tiver muito calor sai fora”
No outro lado, a liderar um exército de centenas de elementos, todos com máscaras e que dançam, saltam e gritam ao som de rabecas e violas, está Paulo Dias, de 46 anos, o Velho da Bugiada.
“São 35 anos a bater pé e a calcar sapos”, conta, lembrando que ingressou nos Bugios por volta dos 10 anos e só falhou um ano. “Primeiro era um Bugio como outro qualquer. Depois o bichinho começou a crescer e pensei ‘eu posso a andar pra frente’. Fui de Rabo, fui de Guia, até chegar ao topo da carreira”, explica Paulo Dias.
E o topo de carreira, “a cereja em cima do bolo”, é assumir a figura do protagonista, o Velho da Bugiada. Desde há três sabia que, “se tudo corresse bem”, este seria o seu ano. “Quero que me corra tudo bem. Fiz os ensaios, fiz tudo, vou pedindo opiniões a uns e outros. Tenho boas expectativas”, garante o sobradense. “No momento da Prisão do Velho basta falhar uma coisa ou outra e já fica tudo estragado. E a Dança de Entrada também é complicada, pelo cansaço”, aponta.
A vitória dos Bugios é certa, mas também Paulo Dias diz que isso não é o mais importante. “Uma pessoa sabe que vai ganhar mas vamos entrar nesta luta porque é uma festa, uma tradição”, sustenta, salientando que uma boa ligação entre o Velho da Bugiada e o Reimoeiro é essencial para determinar o sucesso da festa.
O marceneiro, natural de Sobrado, explica que a preparação física é essencial para aguentar um dia que começa cedo e acaba tarde. “Todos os anos as pessoas que andam lá na frente precisam de preparar-se fisicamente porque é muito cansativo, então nas marés em que há calor na Dança de Entrada uma pessoa pensa ‘o que é que eu ando aqui a fazer’”, confessa.
Por isso, não tem dúvidas. Só uma coisa justifica que volte ano após ano. “Tem que ser paixão. Alguém que venha de fora e diga vou de Bugio por ir, na Dança de Entrada se tiver muito calor sai fora. Eu, que gosto, às vezes chego ao ponto de pensar em desistir”, dá como exemplo.
Enquanto puder, Paulo Dias promete manter-se ligado às Bugiadas e Mouriscadas. “Se Deus quiser hei-de ir de Bugio mais um par de anos. Ser Velho da Bugiada é um sonho que se está a tornar realidade”, afirma.
A luta pela imagem milagrosa
A lenda que serve de base à Bugiada e Mouriscada remonta ao tempo da ocupação da Península Ibérica, quando os árabes ocuparam a serra de Cucamacuca, dedicando-se à extracção do ouro. “O Rei da tribo dos mouros tinha uma filha que estava doente. Chamou curandeiros para tentar curar a filha e nada resultou”, conta Pedro Vale.
Dirigiram-se então ao vale de Sobrado, onde uma tribo cristã dedicada à agricultura e criação de gado, os Bugios, possuíam uma imagem conhecida por fazer milagres. “O Rei mouro pediu ajuda ao velho, o ancião da tribo. O milagre faz-se e a filha cura-se. Aqui começa o dia da festa”, continua o mordomo da Comissão de Festas de São João de Sobrado.
No dia 24 de Junho, para agradecer a graça, o Rei dos Mouros organiza um banquete e convida os cristãos. Esse “jintar”, antes realizado em oficinas e quinteiros de casas antigas, agora acontece na Casa dos bugios. Come-se canja e cozido à portuguesa, logo pela manhã.
“Bugios e Mourisqueiros comem separados. Até que os Mourisqueiros pegam num cesto com restos de comida e vão oferecer aos Bugios, quase em sinal de desprezo. Os Mourisqueiros vão então para a Igreja roubar a imagem de São João”, descreve Pedro Vale.
Começa o conflito. E também uma das partes mais visíveis da festa. Além de uma série de danças acontece a Dança da Entrada, com todos presentes. “Ali está a grandiosidade da festa. Está toda a gente alinhada e vê-se a cor, o barulho, os guizos nos Bugios mas também a marcha e o rigor dos Mourisqueiros”, acrescenta.
Tudo culmina com a Prisão do Velho. “Temos dois palanques, que simbolizam dois castelos, e tiros de canhão de pólvora seca. O Reimoeiro invade o castelo e prende o Velho da Bugiada. Há uma negociação para termos de rendição, mas não resulta. Entram crianças para implorar pela vida do Velho, mas o Reimoeiro está irredutível”, conta ainda o mordomo.
É então que, quando o Velho da Bugiada está preso numa roda de Mourisqueiros, os Bugios recorrem a um monstro, a Serpe, e conseguem libertar o Velho e recuperar a imagem milagrosa.