Carla Vieira tem 51 anos e é natural de Porto, residindo em Leça da Palmeira, Matosinhos. É licenciada em Fisioterapia pela Escola Superior de Tecnologias de Saúde do Porto e exerce a função de fisioterapeuta, no serviço de Medicina Física e Reabilitação do Centro Hospitalar Tâmega e Sousa, há 25 anos.

Num testemunho na primeira pessoa fala dos momentos vividos neste primeiro ano de pandemia. De como o serviço se preparou para dar resposta, do primeiro doente e de não ter medo, de como o equipamento de protecção se tornava incómodo e de como a equipa se uniu nestes tempos difíceis.

O Verdadeiro Olhar está a assinalar um ano de pandemia com vários relatos.

 

“Desde muito jovem que quis enveredar pela área da saúde, por uma profissão que me desse a oportunidade de ajudar o outro, na doença. Tal era a vontade que, mesmo com más notas a matemática, lá fui eu a exame duas vezes, repeti um ano só de matemática. Eu sabia o que queria e era ir para SAÚDE!

Inicialmente, achava que o desporto seria a minha área de eleição nesta profissão, mas depressa percebi que tal não poderia acontecer pois é muito abrangente e tinha muitos desafios pela frente. Iniciei a minha profissão numa clínica, em Penafiel, onde fiquei durante três anos, após os quais resolvi concorrer a uma vaga no Hospital Padre Américo. Apesar de não ser tão gratificante monetariamente foi sem dúvida uma aprendizagem sobre o que era realmente ser fisioterapeuta. Já lá vão 25 anos! Como intervimos em todas as valências médicas, chegou a uma altura em que Fisioterapia em Pediatria fazia mais sentido. A zona do Vale do Sousa é rica em casos pediátricos, e isso levou-me a especializar-me nessa área, com pós-graduações e formações internacionais.

Vai fazer um ano que a pandemia chegou até nós. O que se via pela comunicação social nos outros países era deveras assustador! As imagens mostravam cenários dantescos, típicos de cenas de filme! Senti muita ansiedade e angústia! Comecei a preparar tudo para o caso de confinamento, a orientar a família para ter atenção à medicação que faziam e se a tinham em quantidade suficiente para dois meses. Assim fizeram. Tinha noção de que iríamos passar por tempos conturbados, mas poucos à minha volta o percebiam e isso deixava-me muito irritada e mais ansiosa!

Até que é encontrado o 1.º caso e logo um médico do CHTS… A zona do Vale do Sousa seria o local de início da pandemia em Portugal. Pouco se sabia na altura, mas o que se sabia assustava! O tempo de sobrevivência do vírus em superfícies diferentes, o modo de transmissão, etc… Era tudo muito desconcertante e não me permitia ter um raciocínio que me desse alguma tranquilidade.

No meu serviço, as notícias do que se passava nos hospitais de Itália e Espanha faziam-nos tremer! Após ser cancelada a atividade de ambulatório, continuávamos com o tratamento dos doentes no internamento. Mantivemos a equipa dividida em dois turnos, manhã e tarde. Pouco nos cruzávamos. Tivemos acesso a toda a informação sobre uso dos equipamentos de proteção individual. A equipa estava preparada e a qualquer momento teríamos de tratar o primeiro doente Covid.

Estar na linha da frente é uma constante na minha profissão. Numa sexta-feira à tarde a diretora de serviço, dirigiu se a mim e disse: “é a Carla que vai ao internamento ver o doente com Covid?”. Respondi que sim e fui! Não tive medo, por incrível que possa parecer, só pensei que ia tratar mais um doente internado e que estaria protegida com o equipamento adequado. Era o senhor Teles, de 83 anos, alto e magro. Tinha estado nos Cuidados Intensivos, mas sem necessidade de ventilação invasiva. Apercebi-me da sua desorientação no tempo e espaço, das dificuldades na marcha e perda da sua autonomia. Tinha na sua enfermaria mais três pessoas da mesma faixa etária. Todos pareciam estar desorientados. A forma como nos apresentávamos – fato integral, viseira, dois pares de luvas, máscara P2-, era muito assustadora para alguém que não percebia o que se estava a passar. E sempre sozinhos. No final da semana seguinte, já o senhor Teles se punha de pé sem ajuda e deambulava com pequeno apoio. A Fisioterapia Respiratória e a mobilização precoce com objetivo da autonomia eram as metas da nossa intervenção. Sempre que terminava no internamento, falava com as médicas de Medicina Interna e relatava a evolução dos pacientes. De seguida, sempre com a farda ensopada de tanto transpirar, corria para o elevador, para me levar rapidamente ao piso 3 onde se localiza a Medicina Física e Reabilitação, e me esperava sempre um chuveiro de água bem quente! Ficava sempre com muito frio, o equipamento era muito incómodo, o suor escorria-me pela testa até aos olhos o que provocava uma ardência medonha! E não podia fazer nada! Era necessário aguentar firme para que o meu trabalho contribuísse para que os pacientes melhorassem e fossem para casa o mais depressa possível.

O mesmo acontecia a pacientes com outras patologias, a nossa função mantinha-se, mas com mais precauções. Era esse o meu foco, não entrar em pânico. Sentia-me devidamente equipada, por isso toca a fazer aquilo que sempre fiz: tratar doentes. Resultou muito bem, pois até hoje não fui infetada. Não era por mim que tinha receio se tal acontecesse, mas por poder passar a doença a alguém que ficasse muito doente. Felizmente nunca aconteceu.

Tenho em mente uma jovem com paralisia cerebral, com um quadro motor muito complicado, a cargo de uma família de acolhimento pois a sua tinha-a abandonado, que contraiu Covid… Ninguém perguntava por ela, estava completamente só, não fossem as enfermeiras, auxiliares, médicos, eu… Foi muito doloroso e acabou por falecer. Por outro lado, recordo um doente que após sair dos cuidados intensivos e passar para a enfermaria iniciou as sessões de fisioterapia. Tornou-se mais autónomo, de tal forma que lhe foi antecipada a alta hospitalar e festejar o seu 85.º aniversário em casa. Apesar de ainda estar positivo, a família reunia condições para o receber. Foi muito gratificante.

A primeira ida aos Cuidados Intensivos foi “engraçada”, pois mal entrei na unidade, com o equipamento de proteção, os óculos embaciaram e passei a ver só pelo canto do olho esquerdo. Nada podia fazer. Nesse dia, a colega fisioterapeuta Diana acompanhou-me pois não tinha muita experiência na altura de UCI. Os doentes nesta unidade estavam quase todos ventilados, corriam grande risco de vida. No dia seguinte já foi outro colega e tornou-se natural acrescentar os doentes Covid nos intensivos aos doentes que apoiávamos diariamente.

A forma como a comunidade nos homenageava, a bater palmas à janela todas as noites, não fazia muito sentido para mim, tal como encher-nos de comida! Sempre fui profissional de saúde e isso implicava sempre riscos. Nunca passamos fome, nada nos faltava! Almoçava no refeitório como sempre faço. Fazia me confusão estarem a “desperdiçar” tanta comida quando havia gente que tinha perdido o seu emprego e não tinha dinheiro para alimentar a família! Por outro lado, se sabiam que trabalhava em contexto Covid, as pessoas afastavam-se, tinham receio. Mas à noite iam para a janela bater palmas… Enfim!

A nossa atividade reabriu ao exterior a 4 de maio. Lentamente recomeçamos a tratar os nossos doentes que não tinham Covid, mas tinham outras patologias que se não fossem atempadamente tratadas ficariam com grandes incapacidades para sempre.

Hoje vejo com mais tranquilidade, mas com muito respeito, a minha intervenção em contexto Covid. O tempo ajuda, como diz o povo. Toda a equipa da Medicina Física e Reabilitação se apoia mutuamente. Ficamos mais unidos, só pensávamos no que podíamos fazer mais, para ajudar.

Já fui vacinada e estou com uma imunidade de 99%. Confio plenamente na administração da vacina e quanto mais rapidamente a população for vacinada, penso que mais rapidamente regressaremos ao normal.

Precisamos urgentemente de voltar a VIVER e não de ir vivendo”.

Carla Vieira, fisioterapeuta no serviço de Medicina Física e Reabilitação do Centro Hospitalar Tâmega e Sousa