Armanda Gonçalves, de 64 anos, é juiz presidente do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, com sede em Penafiel, desde 2014.
É um exemplo de mulher que conseguiu, “com esforço e determinação” conciliar a vida pessoal e profissional e chegar longe num caminho que, confessa, ainda não quer terminar.
No dia em que se assinala o Dia Internacional da Mulher podíamos falar da discriminação e desigualdade que afectam as mulheres nas mais diversas áreas da sociedade. Mas na justiça, confirma Armanda Gonçalves, felizmente não é esse o caso. Aliás, nos oito tribunais – de Amarante, Baião, Felgueiras, Lousada, Marco de Canaveses, Paços de Ferreira, Paredes e Penafiel – que integram a Comarca do Porto Este as mulheres estão mesmo em maioria.
Armanda Gonçalves reconhece, no entanto, que ainda há muitos passos a dar na sociedade e, só por isso, se justifica ainda assinalar este dia. “Se temos necessidade de um dia dedicado à mulher é porque algo está mal. Há que dar às mulheres o direito de serem mães e donas de casa mas também profissionais”, defende a juiz que acredita que será pela educação na sociedade e pela consequente mudança de mentalidades que será resolvido o problema.
“A reforma está fora dos meus planos. Ainda tenho muito para dar”
Armanda Gonçalves é natural de Friões, uma pequena freguesia do concelho de Valpaços, na região de Trás-os-Montes. Filha de gente humilde, ligada à agricultura, teve desde pequena o ímpeto de ver ser feita justiça. Ainda criança não se esquece de uma situação que viveu na aldeia em que nasceu. “Havia um litígio com um muro e lembro-me de andar às voltas à beira dos advogados a ouvir o que diziam e a meter as minhas bicadas. Uma das advogadas que lá estava disse que eu teria jeito para estas coisas das leis”, conta a juiz. “Sempre gostei da ideia da justiça, do juiz que está acima das partes e tenta, de maneira imparcial, encontrar uma solução justa”, explica.
A vida haveria de a fazer chegar lá mas só depois de um desvio. Em 1969, por ser mais próximo de casa, foi levada a ingressar no curso de Magistério Primário, em Vila Real. Foi professora durante vários anos, primeiro nas escolas de Trás-os-Montes e depois na zona do Porto, para onde se mudou depois de casar.
Nunca esqueceu o “bichinho” do Direito e nunca perdeu a vontade de estudar mais. Por isso, tanto ela como o marido acabaram por ir estudar juntos à noite. Já com uma filha, completou o ensino secundário e ingressou na faculdade em 1983. “Na altura havia poucas públicas e as privadas eram caras. Entrei em Coimbra, como voluntária”, um regime de trabalhadora/estudante, lembra. Sem nunca deixar de dar aulas, ia a Coimbra buscar apontamentos e estudava em casa. Formou-se em 1988.
Seguiu-se um estágio na área da advocacia. Não se reviu na profissão. Mas não queria deixar as filhas (tem duas meninas, agora mulheres) durante um ano para poder ir para Lisboa ingressar no CEJ – Centro de Estudos Judiciários e aceder à carreira da magistratura.
Acabou por tornar-se representante do Ministério Público, um papel assumido por licenciados de Direito em tribunais com falta de procuradores e juízes de instrução. Passou por Cinfães, Mondim de Basto, Cabeceiras de Basto e Armamar, entre 1989 e 1993, sem nunca deixar a docência.
Nesses anos, e sem rectaguarda familiar na zona do Porto, valia-se de amigos e de empregadas para ajudar com as filhas. “E de muito empenho, determinação e força de vontade. Senão não era possível”, garante.
Entretanto as filhas cresceram. “Tanto a mais velha como o pai me incentivavam a ir para o CEJ”. Ingressou na magistratura em 1993. Antes fez um curso de preparação que a obrigava a passar os dias num corre-corre e quase sem ver as filhas, confessa. “Ia para Cinfães trabalhar, seguia para o Porto para ir às aulas e chegava a casa muitas vezes à meia-noite. No outro dia voltava a levantar-me cedo para ir para Cinfães”, recorda. Já magistrada, seguiram-se passagens pelos tribunais de Resende, Matosinhos, Porto (na pequena instância e na instrução criminal) e no Tribunal de Trabalho de Penafiel.
O período mais longo foi no Tribunal de Família e Menores do Porto, onde exerceu durante 12 anos. “Gostava de trabalhar na instrução criminal porque tinha o bichinho da investigação. Mas Família e Menores é a minha área de eleição. É preciso gostar, é um trabalho desgastante, mas gosto do contacto com as pessoas. Acho que também foi por isso que me candidatei a esta vaga”, explica Armanda Gonçalves.
Quando se perspectivou a reforma do sistema judiciário houve um curso de juízes presidente e foi seleccionada para participar. Foi colocada como juiz presidente do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este em Abril de 2014, numa comissão de serviço de três anos, entretanto renovada por mais três. Termina as suas funções em 2020. Até lá divide os seus dias entre Alfena (Valongo), onde reside, e Penafiel.
Já se podia jubilar, confessa, mas vai antes prestar provas para se graduar e poder ser desembargadora no Tribunal da Relação. “A reforma está fora dos meus planos. Ainda tenho muito para dar”, garante.
Um juiz, defende, tem que ter mais do que cinco sentidos. “Tem que ter sete sentidos para perceber quem está a faltar à verdade. Aplicar o direito é fácil, a capacidade de um juiz sobressai pela sua análise dos factos, sensibilidade, bom senso e capacidade de ouvir. Essas são características importantes”, argumenta.
“Seremos a única Comarca a nível nacional com três mulheres no Conselho de Gestão”
Armanda Gonçalves não sente que tenha sido discriminada ao longo da carreira por ser mulher. “Na área do Direito e na magistratura isso não se nota muito. O tempo de serviço e o mérito fazem a evolução da carreira”, explica. Mas não esconde que teve dificuldades em conciliar a profissão com a vida familiar. “Para as mulheres a fatia do trabalho é sempre maior. Mas somos mais polivalentes. Conseguimos estar a fazer uma coisa e já a pensar noutra. Os homens fazem uma coisa de cada vez. Eu fiz o percurso a par com o meu marido e ele só acabou a faculdade depois de mim”, brinca.
Além disso, diz a juiz presidente do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, na magistratura entram mais mulheres. “Nunca foi preciso quotas. Em breve será preciso, mas para os homens”, julga. Veja-se o exemplo da comarca que dirige. Dos 53 magistrados da Comarca do Porto Este 42 são mulheres, uma realidade comparável à do país, refere. Também dos 240 funcionários judiciais, 144 são do género feminino.
Isso causa também problemas no sistema judiciário, que se vê a braços com funcionários a menos. “Temos o problema do absentismo. As mulheres estão em idade de ser mães. Temos défice de funcionários e essas questões só pioram a situação. A carência de meios humanos não é salvaguardada”, lamenta Armanda Gonçalves. No caso da magistratura existe uma bolsa de reserva, ainda que insuficiente. O mesmo já não se passa no caso dos funcionários judiciais. “É preciso criar essa bolsa”, defende. Mas, antes disso, é preciso resolver as necessidades existentes. O quadro da Comarca incluiria 272 funcionários e existem apenas 240 a exercer funções.
Enquanto juiz presidente, Armanda Gonçalves tem como funções dirigir e representar o tribunal junto das entidades e dar apoio aos juízes. É um braço do Conselho Superior da Magistratura que trata de questões administrativas e define e faz cumprir objectivos, entre outros.
A gestão da Comarca é assegurada por um Conselho de Gestão que inclui, além do juiz presidente, um magistrado coordenador do Ministério Público e um administrador judiciário. No caso desta comarca, os três cargos são ocupados por mulheres. “Seremos a única a nível nacional com três mulheres no Conselho de Gestão”, comenta Armanda Gonçalves.
“Na maior parte dos edifícios não temos dignidade”
Armanda Gonçalves não se furta a comentar a situação vivida nos tribunais da região. “Esta reforma judiciária quis abrir os tribunais, trazer mais transparência e mais actos de prestar contas. Mas a comarca inclui oito tribunais, dispersos, e uma gestão que exige meios que muitas vezes não temos”, salienta.
Por exemplo, na Comarca existia apenas um carro já antigo para as muitas deslocações de processos e profissionais que acabam por ser necessárias. A análise de processos, sobretudo na sua fase de instrução, exige que andem a circular por vários tribunais.
As obras previstas para o Quartel da GNR, em Penafiel, vão permitir transferir a secção de especialização do DIAP de Paredes e a instrução criminal que está no Marco de Canaveses para o mesmo espaço, mais próximo do Tribunal de Penafiel, onde são julgados os crimes mais graves. Mas o processo arrasta-se há vários anos.
Agora fala-se na possibilidade de o Tribunal de Paredes acolher a Instância Central Cível, até agora em Penafiel. Armanda Gonçalves é clara: “para a tirarem daqui e colocarem noutro tribunal só fazendo obras. Se forem criadas condições a Instância poderá ser descentralizada, na totalidade ou em parte”.
A reforma do mapa judiciário está a ser revista e haverá outros ajustes a fazer, adianta. “Com essa reforma o objectivo é não concentrar tanto. Com a concentração a justiça ficou mais longe dos cidadãos. Por exemplo, os casos de Família e Menores estão concentrados em Paredes e ir de Baião ou do Marco de Canaveses até lá é complicado”, dá como exemplo. “Vamos tentar descentralizar um pouco e separar especialidades”, diz.
A esta questão acresce outra. A falta de condições da maioria dos tribunais da Comarca. “Na maior parte dos edifícios não temos dignidade. Foram feitos pequenos remendos mas faltam salas de audiência, salas de espera para as testemunhas, aquecimento. Havia edifícios em que havia infiltrações sucessivas”, sustenta. Em Penafiel, onde são julgados os crimes mais graves da região, “não há entrada controlada com detector de metais” e nem “acesso para pessoas com mobilidade reduzida”, refere ainda.
A situação fica ainda pior pela questão burocrática. “Para mudar uma fechadura são precisos três orçamentos”, lamenta a juiz presidente.
Armanda Gonçalves lembra que há muitos processos em andamento e obras aprovadas para Penafiel e Paredes, que “deviam ter sido feitas antes de entrar em vigor a nova estrutura”. “A crise económica e a necessidade de assegurar o défice do país foram adiando essas obras. O Ministério da Justiça depende do das Finanças. É a nossa maior barreira”, acredita.