A inocuidade da STAYAWAY Covid para a privacidade não justifica a sua adoção obrigatória, não sendo aceitável compará-la com as redes sociais (que são de adesão voluntária e não controladas pelo Estado).
Esta discussão surge como desresponsabilização dos agentes políticos. O aumento de casos era de esperar e não será desculpável se o sistema de saúde não der resposta. Não aceito que me queiram incutir a ideia de que aquilo que se passa é da responsabilidade de quem não instalou uma app.
A semana passada ficou marcada pela notícia da intenção do Governo tornar obrigatória uma aplicação informática de contact tracing, que visa combater a propagação do vírus responsável pela covid-19. A discussão mais audível nesta questão prendeu-se com a privacidade.
Alguns dos defensores da obrigatoriedade da app vieram defender a inocuidade desta para a privacidade dos utilizadores, em particular quando em comparação com outras realidades – nomeadamente, redes sociais. Este argumento parte de uma premissa correta, mas foi utilizado de forma enviesada.
Efetivamente, os dados recolhidos pela aplicação em causa são reduzidos. O ponto fundamental para a STAYAWAY Covid não ser, à partida, problemática para a privacidade dos utilizadores prende-se com a inexistência de centralização dos dados de localização. Contudo, tal não se deve a quem desenvolveu a app ou ao Estado que a implementa. Curiosamente, tal característica deve-se a quem desenvolveu a base tecnológica para as aplicações deste género – Google e Apple. Estas entidades desenvolveram a base com os dados descentralizados, resistindo às pressões de vários Estados (alguns dos quais vieram a recusar utilizar a solução tecnológica desenvolvida por aquelas empresas). Isto faz com que o risco para a privacidade de cada um seja efetivamente diminuta!
Contudo, não pode colher o argumento de que tal justifica a adoção obrigatória da app. Desde logo, porque não é intelectualmente honesto compará-la com outras aplicações ou serviços, como as redes sociais. Nomeadamente, devido a dois motivos. Em primeiro lugar, nenhuma rede social é de registo obrigatório. A natureza voluntária da adesão a tais serviços torna-os insuscetíveis de comparação com uma aplicação que seja de utilização obrigatória. Em segundo lugar, o facto da STAYAWAY Covid ser da responsabilidade do Estado torna toda esta análise única. Por muito que um privado possa colocar em perigo a privacidade de um utilizador, nunca terá o poder que o Estado representa.
Assim sendo, não é com base no argumento da privacidade que será possível fundamentar a obrigatoriedade da app em causa.
A STAYAWAY Covid abre a uma discussão muito mais vasta. Não sendo possível estender-me sobre o tema, remeto para a tomada de posição assumida pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, que integro.[1]
A evidência científica aponta para a ineficiência da solução tecnológica em apreço. Assim sendo, considerando os problemas que se levantam, nomeadamente no respeito pela igualdade, cabe questionar a pertinência da obrigatoriedade da utilização da aplicação.
Fundamentalmente, a discussão relativamente à obrigatoriedade de instalação da STAYAWAY Covid surge como forma de desresponsabilização dos agentes políticos, o que não se pode tolerar. Se aquilo que se passou no País, em particular com o Serviço Nacional de Saúde, entre março e junho foi desculpável, por não ser previsível e impossível de preparar, o mesmo não ocorrerá com a forma como o país responderá à pandemia nos próximos seis meses.
O aumento de casos, com o retomar de boa parte das atividades quotidianas – do trabalho à escola -, era de esperar. Caberá a cada um questionar se o sistema de saúde se preparou convenientemente para este aumento. Não é aparente que tenha havido reforço de meios, nomeadamente humanos. Aquilo que se passará não é desculpável. Não aceito que me queiram incutir a ideia de que aquilo que se passa é da responsabilidade de quem não instalou uma app.
[1] O CNECV entende, nomeadamente, que:
A tecnologia de contact tracing não pode ser considerada estratégia de saúde pública alternativa aos processos convencionais de controlo nacional da pandemia;
A generalização de aplicações móveis pode acarretar efeitos perversos;
As aplicações devem basear-se no princípio ethics by design, devendo a sua implementação ser acompanhada de cuidada ponderação ética, afirmando o dever do Estado proteger a reserva de intimidade da vida privada
Existe uma objeção ética fundamental para se recomendar a sua utilização com caráter obrigatório, devendo ser garantida a proteção relativamente a qualquer tipo de pressão social que condicione os cidadãos para a adoção das aplicações móveis.