Não se sabe se será já nesta segunda-feira, mas vai ser muito em breve, e provavelmente numa segunda-feira, que o Supremo Tribunal dos EUA se vai pronunciar sobre a sentença «Roe contra Wade» de 1973. Este acórdão foi um erro colossal e por isso é muito importante —para os EUA e para todo o mundo— que a decisão seja revertida.
Entre outras coisas, tratou-se de uma violação flagrante do princípio da separação de poderes, elemento-chave de um regime civilizado. Este princípio consiste em separar os principais poderes do Estado em órgãos independentes: o poder legislativo, o executivo e o judicial. O primeiro elabora as leis, o executivo gere a coisa pública e o poder judicial arbitra os conflitos, de acordo com o estipulado na lei.
Numa sociedade saudável, cada um destes poderes limita-se à sua missão própria. Quem legisla não aplica a lei, quem julga cumpre essa lei e não a inventa, quem governa respeita as leis e a independência dos tribunais.
Este princípio básico da vida civilizada é sobejamente conhecido, mas em 1973 os juízes do Supremo Tribunal dos EUA não resistiram à tentação. Num tribunal normal, os juízes têm de se cingir à lei, porque se arriscam a ser corrigidos pelo tribunal superior, mas o Supremo é a última instância do poder judicial e ninguém pode corrigir os seus acórdãos. Neste caso, vários juízes do Supremo deslumbraram-se com o seu poder sem escrutínio, esqueceram-se de que tinham jurado respeitar a lei e fabricaram aquilo que ficou conhecido como «a apreciação do valor substantivo da Constituição». Se a Constituição pretende ser a melhor lei e ela proíbe algo ou prescreve algo com que os juízes não concordam, então prevalece o «valor substantivo», isto é, a opinião dos juízes do Supremo. Com esta retórica, eles usurparam o poder legislativo e, algumas vezes, o poder executivo.
O caso mais clamoroso de arbítrio foi a decisão «Roe contra Wade», que declarou que a Constituição obrigava a permitir o aborto. É evidente que a Constituição dos EUA jamais obrigou tal coisa, mas o poder desmedido subiu à cabeça de alguns juízes do Supremo e, 7 votos contra 2, impuseram ao país a sua opinião.
A indústria do sexo, em particular o negócio do aborto, aplaudiu a clarividência destes iluminados juízes e muitos cidadãos ficaram igualmente satisfeitos com o resultado. Contudo, nos últimos 50 anos tem vindo a crescer, entre os juristas e o público, a consciência de que não compete aos juízes do Supremo inventar leis. Neste momento, segundo as notícias disponíveis, a maioria dos actuais juízes do Supremo é favorável a aceitar a separação de poderes e não pretende aproveitar a sua posição para inventar leis.
Assim, é provável que a decisão «Roe contra Wade» seja revertida e, finalmente, o Supremo Tribunal reconheça que a Constituição dos Estados Unidos não obriga a permitir o aborto.
Este reconhecimento não altera nenhuma lei, apenas restabelece a separação de poderes. Esse triunfo é, em si mesmo, de extrema importância, porque a separação de poderes é um dos pilares da vida social civilizada. Depois, a prazo, vai permitir que os Estados em que a maioria da população defende o direito à vida ajustem a lei no sentido de a proteger efectivamente.
Esta evolução cultural que se verificou nos EUA não foi acompanhada noutros países. Por exemplo, em Portugal, a maioria dos juízes do Tribunal Constitucional ainda não resiste à tentação de usurpar a função legislativa e executiva, sempre que lhes apetece. Nalguns casos, com descaramento.
Nas últimas semanas veio a público o escândalo dos que votaram contra a nomeação do Prof. Almeida e Costa para o Tribunal Constitucional. Este professor de Direito Constitucional da Universidade de Coimbra é das pessoas mais competentes na matéria e é reconhecidamente honesto. Infelizmente, não era isso que se pretendia. O argumento para o rejeitarem não foi a falta de conhecimentos ou a inexperiência: simplesmente ele não defende o aborto e não se podia contar com ele para apoiar agendas tresloucadas. No fundo, havia o grave risco de o Prof. Almeida e Costa respeitar escrupulosamente a Constituição.
O mais triste não é terem votado contra a sua nomeação, é a desfaçatez de deixarem claro que queriam um militante ideológico e não alguém que cumprisse com seriedade a Constituição.
Numa das próximas segundas-feiras, dia em que geralmente se divulgam os acórdãos do Supremo norte-americano, é provável que a infeliz decisão «Roe contra Wade» seja revertida. Por cá, continuamos à espera que o espírito democrático amadureça.