Para Verónica Cardoso, médica pneumologista no Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, este ano de combate à pandemia foi “desafiante” e abraçado com espírito de missão, mas sente que estava apenas a fazer o seu trabalho. “Os profissionais de saúde estão sempre na linha da frente no que diz respeito ao tratamento das doenças e esta é mais uma. Efectivamente esta doença tem a particularidade de ter um impacto enorme a nível mundial (quer na saúde, quer na economia), mas enquanto profissional de saúde sinto que estou simplesmente a fazer o meu trabalho”, descreve. “Relativamente a esta pandemia, acho que toda a gente está na linha da frente e só se todos fizermos o nosso papel é que a conseguimos controlar”, salienta ainda.
A principal dificuldade foi “lidar com o sofrimento dos doentes e familiares”. E o que mais a marcou “foi ver doentes a falecer sem poderem ter os seus familiares por perto e sentir a angústia dos familiares por isso”.
A profissão é o que idealizou? “Há dias em que sim, quando sinto que realmente faço a diferença na qualidade de vida de alguém”
Verónica Cardoso tem 34 anos e é natural de Gondomar. Sem ninguém na família ligada à área da saúde julga que o que a trouxe à medicina foi “a aptidão natural para a área das ciências e a ideia idílica de poder ajudar o próximo”. “No final do secundário, percebi que teria média para poder entrar em Medicina, mas ainda ponderei escolher Ciências Farmacêuticas em primeiro lugar. Confesso que nessa altura, houve alguma pressão social (não da minha família) para que a escolha recaísse sobre a Medicina. Actualmente sinto que foi a escolha acertada, mas provavelmente sentiria o mesmo se escolhesse Ciência Farmacêuticas”, explica.
Formou-se na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Escolheu depois especializar-se na área da Pneumologia, no Centro Hospitalar de São João, onde fez também o internato, “por ser uma especialidade médica (e não cirúrgica) que conciliava a possibilidade de fazer consulta/internamento e técnicas minimamente invasivas”. “Sempre gostei que pudesse usar as mãos para actividades mais técnicas, sem ser propriamente passar o dia todo no bloco”, reconhece a médica.
Concorreu depois para ser Assistente Hospitalar em Pneumologia, no serviço de Pneumologia do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa onde exerce funções desde Maio de 20018, ao nível do internamento, consulta, colaborações internas e técnicas. É ainda responsável pela Consulta de Doenças do Interstício Pulmonar.
Sobre se a profissão corresponde ao que idealizou, admite que nem sempre: “Há dias em que sim, quando sinto que realmente faço a diferença na qualidade de vida de alguém, outros em que não, quando sinto que me faltam condições de trabalho para fazer mais e melhor pelos doentes”.
“Após a primeira vaga preparámo-nos para que houvesse uma segunda vaga no Inverno, mas não antevi que afectasse este hospital da forma arrebatadora como foi”
Apesar de terem acompanhado a evolução da pandemia nos outros países, Verónica Cardoso confirma que só quando apareceram os primeiros doentes é que sentiram as “verdadeiras necessidades e dificuldades” que existiam. “Na primeira vaga, senti que o principal problema foi mesmo o medo do desconhecido, o sentir que a cada dia havia novidades e reestruturações, o aprender a lidar com a imprevisibilidade de cada dia mantendo a calma e sendo proactiva na resolução dos problemas que surgiam. No serviço de Pneumologia houve necessidades de reestruturações, de cancelar algumas consultas ou transformá-las em consultas telefónicas, cancelar alguns exames, mas considero que rapidamente foi encontrado um equilíbrio de forma a não falhar com os doentes não Covid seguidos”, relata a médica. Isso foi feito “à custa de horas extra, tentado dar todo o apoio necessário a estes doentes (alguns através de consulta telefónica)”. Mas nada faria prever o que viria a seguir. “Após a primeira vaga preparámo-nos para que houvesse uma segunda vaga no Inverno, mas não antevi que afectasse este hospital da forma arrebatadora como foi”, conta.
Ela foi uma dos cinco pneumologistas que ficaram afectos às áreas de internamento Covid, entre finais de Outubro e início de Dezembro, a fase mais problemática na região, quando o CHTS atingiu um pico de 235 doentes em internamento devido à Covid.
“Essa foi a altura mais difícil da pandemia no CHTS. Essa foi a fase em que realmente foi necessário o esforço conjunto de toda a gente (médicos, enfermeiros, auxiliares, administrativos, pessoal dos transportes, empregados da limpeza, seguranças…) para dar uma resposta atempada e eficaz a todos os doentes que chegavam e para que conseguíssemos manter-nos física e psicologicamente saudáveis”, admite a pneumologista. “Foi necessário incluir diferentes especialidades no tratamento e gestão destes doentes. A ajuda de outros hospitais de rectaguarda, nomeadamente hospitais privados, que receberam muitos dos doentes mais estáveis ou que simplesmente necessitavam de cumprir tempo de isolamento, foi fundamental”, salienta.
Nessa fase, afirma Verónica Cardoso, “os profissionais de saúde estavam cansados, mas sentiam que havia uma missão a cumprir e havia muita resiliência e entre-ajuda”.
“É sobre os profissionais de saúde que recai a pressão de tentar remarcar e agilizar tudo o que foi adiado o mais brevemente possível”
Nos infectados, a pneumologista viu quadros clínicos diferentes dos que já conhecia. “O mais impressionante foi ver alguns doentes com pneumonias graves por SARS-Cov-2 e insuficiências respiratórias graves, mas muito pouco sintomáticos (sem queixas de falta de ar)”, descreve.
Quanto a lidar com a incerteza de uma doença desconhecida, Verónica Cardoso explica que isso está sempre presente. “A vantagem desta doença ainda não completamente conhecida é que sabemos que está a ser feito um esforço a nível mundial para obter as respostas que precisamos e temos que nos guiar por aquilo que é evidência científica mais actual, reconhecendo que poderá haver alguns ajustes da abordagem desta doença à medida que se conhece mais sobre o comportamento deste vírus”, diz.
O dia-a-dia teve também de sofrer adaptações. “Evitei e ainda evito contacto com os meus pais. Não tenho grandes rituais ao entrar em casa, para além da higienização das mãos e trocar imediatamente de roupa”, refere. Tal como todo o resto da população restringiu o convívio com familiares e amigos. “O facto de estar a trabalhar horas extra fez com que essas restrições fossem menos sentidas, por ter menos tempo livre”, admite a médica.
Uma das principais dificuldades foi manter-se “focada no mais importante”. “Minimizar o sofrimento dos doentes e seus familiares, sem descurar os profissionais de saúde e toda a gente envolvida no cuidar dos doentes, e a minha própria família. Manter-me gentil”, resume.
Verónica Cardoso salienta que esta pandemia vai deixar marcas em todos, não só nos profissionais de saúde, mas que estes têm estado “sob muita pressão”. “Independentemente, de haver actividades programadas que foram canceladas é sobre os profissionais de saúde que recai a pressão de tentar remarcar e agilizar tudo o que foi adiado o mais brevemente possível. Num ambiente de incerteza que ainda vivemos sobre qual será a evolução da pandemia nos próximos meses, isso torna-se muito difícil e causa ansiedade nos profissionais de saúde”, explica.
“Acredito que o vírus ficará em circulação à semelhança do vírus da gripe, mas espero que a vacinação controle o número de infectados”
A médica já não está actualmente, até pela redução do número de casos, a trabalhar nas enfermarias Covid. Mas durante os meses que lá trabalhou sustenta que “a principal dificuldade é lidar com o sofrimento dos doentes e familiares.
“O que mais me marcou foi ver doentes a falecer sem poderem ter os seus familiares por perto e sentir a angústia dos familiares por isso”, elenca, falando de uma situação em concreto. “Termos que informar um doente que ia ter alta do internamento que a mãe, com quem vivia, entretanto também foi internada com Covid e que faleceu naquele dia”, dá como exemplo.
Verónica Cardoso sente que o trabalho dos profissionais de saúde é reconhecido pela população em geral. Nunca esteve infectada e já foi vacinada. Acredita que é o caminho. “Os números da pandemia em Portugal estão sempre em consonância com as medidas de distanciamento social. Infelizmente, até haver uma vacinação em massa, não haverá outra forma de lutar contra esta pandemia que não o confinamento (mais ou menos restrito)”, afirma.
Sobre o tempo que esta situação ainda poderá durar persiste a incógnita. “Acredito que o vírus ficará em circulação à semelhança do vírus da gripe, mas espero que a vacinação controle o número de infectados e, por conseguinte, a pressão sobre os cuidados de saúde e haja o alívio das medidas restritivas”, conclui.