O trabalho de seis anos teve vários resultados. Em primeiro lugar, um livro de quase mil páginas, chamado «Clavis Bibliothecarum», com catálogos e inventários de bibliotecas religiosas em Portugal desde o século X até à extinção das ordens religiosas.
Em segundo lugar, descobriu-se que, há uns séculos, houve em Portugal muitas bibliotecas de grandes dimensões, apetrechadas com os livros científicos mais modernos. Quase todos os livros se perderam. O terramoto de 1755 deu um contributo. Depois, o Marquês de Pombal expulsou os jesuítas e as respectivas bibliotecas foram confiscadas e perderam-se. A seguir, as invasões francesas e principalmente os ataques à Igreja, em particular a extinção das ordens religiosas no século XIX, deram descaminho ao resto. Do que foi um património cultural riquíssimo, acumulado e valorizado durante séculos, não resta praticamente nada, a não ser os catálogos do que havia e já não há. Giurgevich e Leitão identificaram mais de um milhar de inventários de livros, provenientes de cerca de quatrocentos mosteiros e casas religiosas no nosso país. Em Portugal, praticamente só a Igreja se interessava por livros e, sobretudo, só a Igreja é que os disponibilizava à população, mas não estávamos mal servidos.
Poucos anos antes de começar a destruição das bibliotecas portuguesas, o Embaixador português em Londres escrevia para Lisboa, ao Rei D. José: «Esta universidade [a de Cambridge] se compõe de 17 colégios e a de Oxford de 23; eu corri todos novamente e a outra tinha visto já também e a sua grande biblioteca, que consta de muitas casas, mas nada digno de notar; já disse a Vossa Senhoria que tudo isto se parece com as bibliotecas dos nossos conventos».
É bom ficar a saber, com dados muito concretos, que Portugal teve a oportunidade de ser um país muito avançado, culturalmente e cientificamente. Só é pena termos perdido, logo a seguir, essa oportunidade, em nome da tentativa de erradicar a influência da Igreja católica.
Por que é que os conventos multiplicavam as bibliotecas, atafulhadas em livros? Os monges acreditavam que «claustrum sine armario, quasi castrum sine armamentario» (claustro sem biblioteca, era como uma fortaleza sem armas). O argumento soa belicoso, mas naquela época era convincente, a julgar pelos milhares e milhares de livros destas centenas de bibliotecas das instituições da Igreja.
Havia de tudo. Literatura, teologia, história, ciências da natureza, medicina, matemática… mas havia também arte e livros preciosos, como as quatro Bíblias conservadas no mosteiro de Alcobaça dentro da arca chamada «das três chaves».
Há uma semana, na sessão de lançamento do livro, D. Manuel Clemente comentou que este imenso catálogo desvendou algo da cultura do nosso país nessas épocas passadas: a primeira indicação é que era uma cultura sistemática.
Realmente, a dispersão do espólio das antigas bibliotecas portuguesas tinha tirado contexto aos livros que sobreviveram. Os poucos que restavam pareciam exemplares soltos, até esta recuperação dos inventários mostrar a estrutura lógica das colecções.
A investigação que deu origem ao «Clavis Bibliothecarum» começou como um meio para compreender e caracterizar os mecanismos de aquisição e circulação das ideias e dos livros científicos. Porque o desenvolvimento da ciência num país depende muito da formação científica e das bibliotecas e isso explica, em parte, o actual atraso português. Quando outros países puseram a render o seu património de conhecimento, em Portugal, dedicámo-nos a destruir os lugares privilegiados da ciência. Deu trabalho, sem dúvida, arruinar tão completamente o que havia, mas, ao fim de três séculos, conseguiu-se.
Os autores do «Clavis Bibliothecarum» passaram seis anos a abrir caixas e consultar documentação sobre o património perdido. Não os critico. Acho que valeu a pena. Mas fico a pensar que, hoje, o nosso país podia estar diferente…