Verdadeiro Olhar

Uma guerra mundial (com muita calma)

 

Nesta semana, em Tbilisi, na Georgia, o Papa Francisco voltou a dizer que há uma guerra mundial para destruir a família: «Não é com as armas, mas com as ideias. É uma colonização ideológica». E apontou o dedo: «um dos grandes inimigos [da humanidade e da família] é a teoria do género».

A notícia não é nova, mas é grave. De repente, lembrei-me de outro contexto.

A poucos dias de a Prússia e a Áustria sucumbirem na Primeira Guerra Mundial, o comentarista Karl Kraus descrevia a gravidade do momento: «Em Berlim, a situação é séria mas não é desesperada; em Viena é desesperada mas não é séria». As duquesas e os duques de Viena continuavam a frequentar os salões, a população discutia ópera e culinária, os soldados morriam na frente de batalha e, em poucos dias, o império Austro-húngaro capitulava e desaparecia para sempre. A Áustria ria-se muito com os trocadilhos de Kraus, mas foi esta frase que alcançou maior ressonância mundial. Ainda hoje se repete. Por exemplo, no filme «Situation hopeless – but not serious», uma comédia hilariante situada na Segunda Guerra Mundial, com Alec Guinness no papel principal.

Parece que muitos cristãos ainda não repararam na luta mundial contra a família, situação que lembra uma máxima do velho comunista, Leon Trotsky, que se costuma citar com a palavra «dialéctica» substituída por «guerra»: «Você pode não estar interessado na guerra, mas a guerra está interessada em si».

Os avisos do Papa Francisco acerca da destruição da família não são novos.

O Papa João Paulo II perspectivava toda a história do mundo actual como um combate muito concreto contra a família. Convalescente pela segunda vez das balas de Ali Agca, explicava o porquê do ataque «precisamente porque ameaçam a família, porque a atacam. O Papa deve ser atacado, o Papa deve sofrer, para que todas as famílias e o mundo inteiro vejam que há um Evangelho, por assim dizer, superior: o Evangelho do sofrimento, com o qual é preciso construir o futuro, o terceiro milénio das famílias, de cada família e de todas as famílias» (29 de Maio de 1994).

João Paulo II repetiu com frequência o mesmo alerta de Francisco. Por exemplo, no livro «Memória e Identidade», queixa-se «das fortes pressões do Parlamento Europeu para que as uniões homossexuais sejam reconhecidas como uma alternativa de família, inclusivamente com o direito de adoptarem crianças. É lícito e até necessário perguntarmo-nos se isto não é fruto de uma ideologia do mal, talvez mais subtil e encoberta, que tenta servir-se dos direitos do homem contra o homem e contra a família».

Há semanas, Francisco tinha relatado aos jornalistas uma conversa recente com Bento XVI, em que os dois falavam do mundo: exactamente o mesmo diagnóstico. Não é, aliás, a opinião recente de nenhum deles. Descrevendo o panorama mundial à Cúria Romana, Bento XVI alongou-se na descrição desta guerra, que classificou como «atentado contra a humanidade»: «O homem nega a sua própria natureza. (…) A manipulação da natureza, que deploramos hoje a respeito do meio ambiente, converteu-se na opção de fundo do homem relativamente a si próprio». E mais adiante: «Na luta pela família está em jogo o próprio homem. E torna-se evidente que onde Deus é negado, também se dissolve a dignidade do homem. Quem defende Deus, defende o homem» (21 de Dezembro de 2012).

Francisco considera que esta guerra terrível, que ameaça o homem e a comunidade humana no seu mais íntimo, não vai ser ganha por heróis valentes, mas pelo Deus misericordioso. Não vai ser ganha conquistando terrenos, mas enchendo o mundo de felicidade. O adversário não é um inimigo, mas justamente o amigo que se pretende salvar.

Uma guerra estranha, mas bem concreta. Uma luta sem tréguas contra o próprio egoísmo. O heroísmo de dar a vida pelos outros. Nada de aconchego e descanso.

Os Evangelhos registam a posição de Cristo: «Quem não está comigo está contra Mim» (Mateus 12,30; Lucas 11,23), ou, como vem em S. Marcos, «quem não está contra nós, está connosco» (Marcos 9,40).