Pedro Rosinha chegou a emigrar para o Reino Unido, por falta de oportunidades em Portugal, mas regressou e, há seis anos, que é enfermeiro do Serviço de Urgência Médico-Cirúrgica no Hospital Padre Américo, em Penafiel, além de fazer parte da equipa da Viatura Médica de Emergência e Reanimação de Vale do Sousa.
A pandemia, reconhece, trouxe novos desafios, como o uso de equipamento de protecção individual. “A utilização de máscara é obrigatória sempre e, apesar do desenvolvimento tecnológico dos equipamentos no sentido de eficácia e conforto, é evidente que no final de um turno em que estamos horas contínuas a respirar através de uma máscara ou que passamos horas a envergar um fato integral impermeável, isso se reflecte em desgaste físico e maior cansaço”, diz o enfermeiro que reside em Valongo. “Não posso negar o facto de terminarmos um turno, em que prestamos cuidados a um diverso número de doentes com infecção por SARS-CoV-2, exaustos”, acrescenta.
Se antes associava a palavra pandemia “a algo que não esperava vivenciar”, agora associa a “resiliência” e a um dia-a-dia é marcado, a título pessoal e profissional pelo “espírito de coragem, luta e dedicação”.
“Ser enfermeiro, é cuidar. Parece um cliché, mas é uma palavra que sem dúvida define a nossa profissão”
Bombeiro voluntário desde jovem, Pedro Rosinha, de 32 anos, iniciou um contacto próximo com a área da saúde e da emergência pré-hospitalar, pelo que deixou de ter dúvidas de que o futuro passaria pela Enfermagem.
O natural da Maia licenciou-se na Cespu, em Gandra, Paredes, e especializou-se em Enfermagem médico-cirúrgica, fazendo uma pós-graduação em abordagem ao doente crítico.
“Tenho o privilégio de desempenhar funções na área de que gosto verdadeiramente, a emergência, sendo esse um factor de motivação no meu dia-a-dia profissional, que foi ao encontro daquelas que eram e são as minhas expectativas dentro da profissão. Ser enfermeiro, é cuidar. Parece um cliché, mas é uma palavra que sem dúvida define a nossa profissão. Estamos diariamente em contacto directo com o doente, atendemos as suas necessidades, acompanhamos, tratamos”, descreve Pedro Rosinha.
“Não previa inicialmente, apesar de ter a percepção da gravidade da situação, a dimensão, os danos e as mudanças no nosso estilo de vida que a pandemia trouxe”
Quando a pandemia se tornou uma realidade próxima, o enfermeiro diz que a maior dificuldade foi enfrentar o desconhecido, que tornava “impossível prever o dia seguinte. Foi um dos anos mais difíceis que enfrentou, reconhece. “Tem sido um ano de enorme empenho, dedicação e resiliência de todos os profissionais de saúde, só assim temos conseguido fazer face a esta pandemia”, resume.
Apesar de acompanharem a evolução da pandemia no mundo pela comunicação social a chegada ao país e, concretamente à região do Vale do Sousa, não deixou de apanhar todos de surpresa. “Estava expectante, era algo desconhecido, mas com o qual tínhamos claramente que lidar. A base científica era escassa e, diariamente, recebíamos novas informações sobre o desenvolvimento do vírus. Houve reajustes no serviço, foi necessário implementarmos novos procedimentos, nomeadamente na abordagem ao doente, critérios de isolamento, uso de equipamento de protecção individual, entre outros”, relata o enfermeiro, admitindo que “não previa inicialmente, apesar de ter a percepção da gravidade da situação, a dimensão, os danos e as mudanças no nosso estilo de vida que a pandemia trouxe”.
A primeira vez que contactou com um doente infectado com Covid o sentimento foi “de empenho e dedicação” para prestar os melhores cuidados. “Adoptamos como equipa um espírito incrível de coragem e determinação em cuidar desse doente, contrariando o desconhecido e enfrentando a circunstância do momento, o objectivo foi sempre prestar os melhores cuidados ao doente. Curiosamente recordo-me do receio que o doente demonstrou pela sua saúde, visto estar infectado e, sem dúvida que aí nesse momento, colocamos todos os nossos próprios receios de parte em prol dessa pessoa, tranquilizando-o”, afirma Pedro Rosinha. Esse sentimento prevaleceu em todos os outros doentes que se seguiriam.
Numa região que cedo atingiu uma elevada incidência de infecções, isso reflectiu-se num elevado número de admissões no serviço de urgência. E o enfermeiro não nega que houve receio de contrair o vírus e de contaminar as famílias.
“Foi necessária uma adaptação a nível pessoal devido a esta circunstância profissional. Sendo a minha esposa profissional de saúde e envolvida na prestação de cuidados a doente com infecção por SARS-CoV-2, optamos por nos resguardar da restante família e amigos em especial daqueles que estão dentro do considerado grupo de risco, como os nossos familiares idosos. Foi difícil, mas ainda hoje continuamos a limitar os contactos familiares no sentido de os protegermos”, justifica o enfermeiro especialista.
Em casa, deixou-se de entrar com o calçado da rua e passou-se a mudar de roupa à chegada, assim como a fazer a desinfecção constante das mãos. No trabalho, com doentes com suspeita de infecção ou infecção confirmada passou a ter de usar um equipamento com nível de protecção “elevado”, nomeadamente os fatos integrais, touca, cobre-botas, luvas de cano longo, óculos de protecção. Isso provoca “um maior desgaste físico durante o horário de trabalho”, reconhece.
“Ver alguém relativamente jovem numa circunstância assim fez-me pensar que aquilo era real e que qualquer um de nós ou nosso familiar poderia estar naquela posição. Isso marcou-me”
A morte já estava presente no dia-a-dia de Pedro Rosinha, mas isso acentuou-se. “Infelizmente, no serviço de urgência, lidamos diariamente com a morte desde sempre. Esta pandemia veio-nos trazer outra doença grave, com consequências graves e com as quais nos deparamos, nomeadamente no eventual processo de morte. Nunca queremos que isso aconteça. O nosso objectivo é travar essa consequência tanto nesta como noutras doenças, não sendo sempre possível, estamos preparados e cada um de nós adopta as suas estratégias para lidar com a morte, na certeza porém de que o nosso desempenho é o melhor em prol do doente e das suas famílias, o que a mim pessoalmente se traduz em tranquilidade e solidariedade”, explica o enfermeiro.
Entre as histórias que guarda na memória, contra uma de um infectado na fase inicial da pandemia, em estado grave. “Tratava-se de um senhor de meia idade perfeitamente consciente e orientado que, na sala de emergência, nos diz que receia pela própria vida. A realidade é que, apesar de reconhecermos que efectivamente a sua vida se encontrava em risco e não conseguindo naquele momento prever o desenrolar da doença e o seu desfecho, o nosso foco estava em salvar aquela pessoa e proporcionar-lhe bem-estar. Mesmo com o eventual receio em contrairmos o vírus, o facto de estarmos sob o desgaste da utilização do equipamento de protecção individual, não deixamos de desencadear um conjunto de procedimentos necessários para melhorar a sua condição e, para além do nosso conhecimento científico e da técnica no procedimento, o nosso lado humano fez-nos ter uma palavra de conforto e de determinação para aquela pessoa, mantendo também a nossa própria expectativa de que o doente vai melhorar, recuperar”, relata o enfermeiro residente em Valongo. A par disso, existem os próprios receios dos profissionais. “Nesse momento foi necessário harmonizar o sentimento do doente, tal como os meus próprios sentimentos e convicções. E, naquela fase, ver alguém relativamente jovem numa circunstância assim, devido à infecção por SARS-CoV-2, fez-me pensar que aquilo era real e que qualquer um de nós ou nosso familiar poderia estar naquela posição. Isso marcou-me”, acrescenta Pedro Rosinha.
“Eu diria que todos estamos na linha da frente, por dois motivos: porque nos toca a todos e porque todos podemos contrair o vírus, e porque depende de cada um de nós adoptar as medidas adequadas para combater esta pandemia”
Tudo isto, vai ficar para o futuro, com aspectos positivos e outros negativos. “Vejo como aspecto positivo a sensação de dever cumprido, o orgulho pelo nosso desempenho, olhar um dia em retrospectiva e perceber aquilo que vivemos e que ultrapassamos com uma enorme capacidade de resiliência”, afirma. “O principal aspecto negativo desta pandemia foram os ‘momentos’. Momentos que ‘perdemos’ com os nossos familiares e amigos. Estar mais afastado, mesmo que apenas fisicamente, deixa marcas. Cabe-nos a nós recuperar esse tempo”, acredita o enfermeiro.
Confrontado com os números da pandemia no país, Pedro Rosinha frisa o elevado de casos e as consequências graves a nível social e económico, mas sem deixar de apontar que “todos os dias verificamos quebras às regras impostas, que são claramente em prol de todos”. Apesar da descida de infectados, o futuro ainda é uma “incógnita” e é preciso manter cuidados, adverte.
Sobre o reconhecimento aos profissionais de saúde, crê que a imagem de “heróis” que lhes foi atribuída se tem dissipado. “Contudo julgo que depois de tudo o que passamos e vivenciamos a nossa população está mais desperta aquilo que é o trabalho dos profissionais de saúde, as nossas dificuldades e a importância das nossas funções. Quero acreditar que todos concordam que os profissionais de saúde têm um papel preponderante na segurança e nos cuidados à nossa população, o que tem vindo a ser claramente visível a todos ao longo desta pandemia”, defende. “Com o mediatismo que existiu relativamente ao excesso de afluência em algumas instituições, ao limite de vagas disponíveis, entre outras, a população encontra-se mais informada. Sendo que tem agora uma maior percepção das consequências de um aumento excessivo do número de casos, do número de internamentos, de idas ao serviço de urgência etc. Isso, obviamente, exige muito dos profissionais de saúde”, acrescenta.
Pedro Rosinha diz que todos têm estado “na linha da frente” do combate à Covid-19, porque é mesmo de todos que depende o resultado. “Eu diria que todos estamos na linha da frente, por dois motivos: porque nos toca a todos e porque todos podemos contrair o vírus, e porque depende de cada um de nós adoptar as medidas adequadas para combater esta pandemia”. Mas não deixa de apontar: “contudo compreendo o conceito de estar ‘na linha da frente’, e aí os profissionais de saúde mostraram o que valem. Nos momentos bons, nos momentos maus, perante todo o risco e todas as mudanças que vivenciamos, nós, profissionais de saúde, estivemos sempre presentes, sem nunca virarmos as costas a quem de nós precisa”.
Ele, em concreto, foi-se apoiando na família, amigos e equipa para ultrapassar os momentos de dificuldade e stress. Nunca esteve infectado e já foi vacinado. Tem esperança que a vacina conduza à “normalidade social e económica”.
Ainda assim deixa o alerta: “os próximos meses serão o reflexo das nossas atitudes. Se mantivermos os devidos cuidados, o respeito, o dever cívico, iremos encurtar o tempo necessário para ultrapassarmos esta pandemia”.