Verdadeiro Olhar

“São Martinho sem castanhas e vinho não é São Martinho” (com vídeo)

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

“Vão umas castanhinhas senhor? São muito boas”, garante Luzia Silva, castanheira há 20 anos.

Se costuma passar pela avenida principal de Penafiel é normal que o seu caminho já se tenha cruzado com o dela. Se calhar até já lhe comprou castanhas (eram boas?).

Nos dias de São Martinho, Luzia troca o seu lugar em frente à Assembleia Penafidelense pelo Largo da Ajuda e prepara-se para dias de trabalho intenso. É que, para quem vende castanhas, São Martinho é sinónimo de muito trabalho, noites mal dormidas e pouco tempo para comer.

“Ele há São Martinhos de trabalhar até às 4h00 da manhã. Às vezes tenho que dizer ao meu marido ‘já chega’. E é só o tempo de ir a casa tomar um banho para voltar quase logo”, conta a penafidelense de 51 anos.

É que é nesta altura que se faz mais negócio. No ano passado, Luzia Silva vendeu cerca de 500 quilos de castanhas. “São Martinho sem castanhas e vinho não é São Martinho”, defende.

“GOSTO DE LIDAR COM O POVO, DE FALAR COM AS PESSOAS”

Ser castanheira não era, de todo, um sonho de criança, mas foi por aí que a vida decidiu levar Luzia Silva.

Filha de lavradores de Penafiel, que vendiam fruta junto à estação de Paredes, Luzia é uma das mais novas de oito irmãos. Por isso, teve a sorte de poder estudar, enquanto muitos dos irmãos mais velhos já estudavam para ajudar a família. “Tive uma infância feliz, dentro dos possíveis e do que os meus pais me podiam dar”, conta enquanto assa castanhas. “Eu fui a única que fui estudar e que não fui para o campo. Não sei nada de trabalhar no campo. Fiz o sexto ano e depois casei muito cedo. Ia fazer 17 anos”, acrescenta, lembrando os tempos de namoro, à moda antiga, junto dos pais.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

Casar foi, por isso, uma forma de mudar de vida. Teve dois filhos que foram criados à moda antiga. “A minha vida de quase 52 anos foi isto e criar os meus filhos. A minha sogra vendia fruta nas feiras e os meus filhos foram criados lá. A mais velha em cima da banca das cebolas e das batatas e o mais novo dentro da alcofa por baixo da banca. Os meus filhos nunca souberam o que era uma ama”, recorda com orgulho.

A nível profissional, foi trabalhar para dois hipermercados, primeiro como empregada de limpeza e depois na secção de peixaria. Seguiu-se mais um período de cerca de um ano e meio na peixaria dos cunhados, em Paredes, uma actividade que sempre lhe agradou. “Adoro lidar com peixe. Fascina-me fazer a vontade aos clientes. Gosto daquilo que fazia e aqui gosto também. Gosto de lidar com o povo, de falar com as pessoas. Se pudesse abria uma peixaria minha”, confessa Luzia Silva.

“AS PESSOAS AINDA GOSTAM DE CASTANHA ASSADA. TENHO CLIENTES DIÁRIOS QUE ME VÊEM BUSCAR MEIO CENTO DE CASTANHAS”

Mas o desemprego bateu-lhe entretanto à porta. E o rendimento fazia falta à família. Até que, há cerca de 20 anos, lembrou-se que ser “castanheira” podia ser o seu modo de vida.

“O fundo de desemprego acabou e eu disse ao meu marido ‘vou-me meter a assar castanhas’. Ele respondeu-me ‘não vais nada’ e eu disse ‘vou, vou que isso não há-de ser assim tão cego de fazer. Se as outras pessoas fazem eu também devo de aprender’”. Tomada a decisão, meteu-se a aprender sozinha uma arte que, diz, não tem propriamente segredo. “Passava pelas castanheiras e via o que era preciso ter e como faziam. E assim comecei. A primeira vez correu mal que as castanhas ficaram todas queimadas, mas depois à segunda, terceira e quarta já correu bem”, conta.

Passou a dedicar-se só à venda de castanha assada e não se arrepende. Todos os anos, entre 1 de Outubro e 15 de Março, está nas ruas, com as mãos sujas de carvão e com o fumo que sai do fogareiro sempre a rondá-la. “Se a castanha este ano chegar lá. Vamos lá ver. Com a seca houve menos castanha e com os fogos também. Se chegar até Março cá estarei neste sítio, se Deus quiser”, adianta.

É que vender castanhas, tal como arranjar peixe, enche-lhe as medidas. “O trabalho em si é agradável e lidar com as pessoas também. Tudo me fascina”, explica. E dá-lhe gosto ver que há clientes que a procuram todos os anos. Outros vêm mesmo todos os dias. “As pessoas ainda gostam de castanha assada. Tenho clientes diários que me vêem buscar meio cento de castanhas. As castanhas são tradição. Então no São Martinho ainda mais. São Martinho sem castanhas e vinho não é São Martinho”, sustenta.

“É UMA FESTA MUITO BONITA QUE METE MILHARES DE PESSOAS. TENHO VÍDEOS EM CASA QUE O PESSOAL POR AQUI ACIMA PARECE MOSQUITOS”

Pára a conversa para atender uma cliente. “Quanto é que vai ser? Uma dúzia?”, pergunta. “Então é 1,5 euros. Estão quentinhas”, garante, enquanto cobre as castanhas com vários panos para as manter abafadas. As já frias deixa-as descobertas como um chamariz, mas já não serão para vender.

Pregões? Não há. “Às vezes ao domingo brincamos e ainda dizemos “leve castanhas  quentinhas”, mas não há pregões”, refere.

Memórias do São Martinho quando mais nova Luzia não tem muitas. Do que recorda só começou a vir à festa depois de casada e com filhos. A festa não mudou muito, diz, e é “uma feira muito boa quer para os comerciantes quer para quem vem visitar”. “Vem sempre muita gente. É uma festa muito bonita que mete milhares de pessoas. Tenho vídeos em casa que o pessoal por aqui acima parece mosquitos”, resume.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

Este ano, a castanha não está nos seus melhores dias, reconhece a vendedora, esperando maior qualidade daqui para a frente. Quanto à confecção, não há segredos, salienta a penafidelense: “As pessoas às vezes perguntam qual é o segredo, mas o segredo não é nenhum”. A castanha tem que ser boa, claro, e tem que levar um pequeno golpe. Depois o carvão que usa também é caseiro, o que confere à castanha assada o tom cinza, em vez de preto. Por fim, é só deitar “sal na brasa” e, em cerca de 10 minutos, as castanhas estão prontas.

Este Verão prolongado, que ainda não era de São Martinho, não impede as pessoas de procurar castanhas. Ainda assim, Luzia Silva reconhece que o período alto de venda é o São Martinho. “No São Martinho vende-se muito mais castanha. Tenho cinco panelas a trabalhar e um carrinho para assar. O meu marido mete uma semana de férias para ajudar e o meu filho também dá uma mão. Fora do São Martinho vai-se vendendo, vai dando para a sopita”, explica.

CASTANHEIRA ATÉ MORRER

Nem todos os São Martinhos são iguais e contas só faz no fim, por isso, não tem ideia de quantos quilos de castanha assada irá vender. O ano passado rondou os 500 quilos.

O preço da castanha crua tem variado muito nas últimas semanas. Já o da castanha assada não muda há muito, afirma a vendedora. “Uma dúzia é 1,5 euros e um quarteirão dois euros. Há gente que ainda pergunta quanto é um quarteirão… São 25 castanhas. Eu dou 26”, refere. Ainda assim, há sempre quem reclame do preço.

Se Luzia chegou a castanheira por vias do destino, agora é por escolha que diz que vai manter-se nesta profissão. “Enquanto eu for viva e tiver saúde conto continuar com isto até ao dia da minha morte”, assume.