A vida de Gracinda Ramos é vivida em duas rodas. É assim que se desloca para trabalhar e para viajar há vários anos. Diz, no entanto, que não é apaixonada por motas, é apaixonada pela sensação de as conduzir.
Nos últimos anos, o gosto pelas viagens levou esta professora de Artes a percorrer de mota 39 países. Na bagagem traz sempre muitas fotografias, desenhos e estórias para contar. Estórias essas que vai, em breve, colocar em livro.
Sem procurar recordes, Gracinda Ramos já percorreu de mota mais de 830 mil quilómetros. Só neste mês de Agosto fez mais 20 mil quilómetros numa viagem que a levou de Portugal até à Rússia.
Odeia andar de carro desde criança
“Aos pássaros Deus deu duas asas, a mim … deu-me duas rodas!”. A frase mostra a todos ao que vão quando acedem ao blogue “Passeando pela Vida” onde, há vários anos, Gracinda Ramos se habituou a colocar as memórias dos sítios que percorre. As memórias eram mais para ela própria do que para os outros, mas foi ganhando seguidores e amigos, que passaram a recorrer a ela quase como se de uma agência de viagens se tratasse. Fazem perguntas sobre os países, acompanham as suas viagens e querem sempre mais. Esta professora da Escola Secundária de Paredes, natural de Leça da Palmeira, criou então uma página de Facebook, com o mesmo nome, onde continuou a documentar as suas viagens.
Nada começou por uma grande paixão por motas. Gracinda diz mesmo que não é apaixonada pelas duas rodas, têm sim “uma paixão por conduzir motas”. O problema é que desde muito pequena nunca gostou de andar de carro. Enjoava, frequentemente, sempre que ia com a família em passeio. “Chegava a suplicar para não ir e para me deixarem ficar com a minha avó”, recorda. Por isso, ao contrário dos outros adolescentes, a ideia de tirar carta e de ter um carro nunca lhe agradou.
As duas rodas surgiram como uma opção. Pegou numa mota pela primeira vez aos 13 anos, quando mal tinha aprendido a andar de bicicleta. “Gostei tanto da experiência que, muitas vezes, passei a conduzir mota nos meus sonhos”, conta a docente. A partir daí, sempre que podia, dava uma voltinha nas motas dos amigos.
Como ainda não tinha idade para andar de mota, comprou uma bicicleta. Nela, passou a escapar-se para todo o lado. “Fazia 900 a 1000 quilómetros por mês de bicicleta”, garante. Até que o pedalar já não era suficiente. Queria ir mais longe. Aos 21 anos comprou a primeira mota, uma Vespa 50 que a acompanhou quase 10 anos. Os horizontes abriram-se. Começou a explorar o país.
Foi à Suíça sozinha e sem nada planeado
Por volta dos 28 anos, Gracinda Ramos ganhou uma bolsa de estudo e foi para a Suíça. “Há um antes e um depois da Suíça na minha vida”, diz a professora que tem um ateliê de Pintura em Penafiel, onde reside. Foi lá que decidiu que a sua vida seria sobre duas rodas e que não ia tirar carta de carro, como toda a gente queria. Lá, conheceu muita gente com motas, experimentou várias, recolheu informações.
Quando voltou a Portugal comprou uma nova Vespa. Em oito meses fez 14 mil quilómetros… Tinha cerca de 30 anos quando decidiu que estava na hora de comprar uma “mota das grandes”, de maior cilindrada. Escolheu uma Transalp 600 e não lhe dava descanso. Com ela esta professora de Educação Visual e Artes percorreu todo o país e também Espanha e Andorra. Sempre sozinha, sem dizer nada a ninguém. “O medo dos outros enfraquece-nos”, acredita. E estava farta de ouvir falar de medos e perigos.
Num ano e meio já tinha feito 76 mil quilómetros. Teve um acidente, mas não perdeu o gosto pelas duas rodas. Acabou por comprar uma Africa Twin e decidiu que queria ir mais longe, queria ir até à Suíça visitar os amigos que lá tinha deixado. Não pensou logo em ir de mota até lá, mas queria ter um transporte para se movimentar dentro do país. Tentou enviar a mota, mas era difícil na altura, e o local mais próximo para o fazer acabava por ser Barcelona. “Pensei: ‘Quem faz 70 mil quilómetros num ano também faz 2000 até à Suíça”, recorda a professora.
Em Janeiro desse ano começou a dizer “em Agosto vou à Suíça!”. “Lembro-me que quatro ou cinco pessoas disseram logo que iam comigo, mas há medida que a data se aproximava todos desistiam”, conta Gracinda Ramos. Desenhou o caminho num mapa e quando acabaram as aulas e os exames da Escola Secundária de Penafiel, onde leccionava na altura, acordou uma manhã e, sem nada planeado, achou que era um bom dia para partir. Meteu algumas coisas na mala, agarrou no cartão Visa, encheu o depósito e seguiu em direcção a Vilar Formoso. “Pelo caminho dizia sempre à minha mãe que estávamos todos bem. Nunca disse que ia sozinha. E em dois dias cheguei lá”, diz a docente.
“Passei a ter saudades de viajar”
Quando regressou, em Setembro, a mota, com dois meses e meio, já tinha 15 mil quilómetros. E Gracinda percebeu que o desejo pelas viagens aumentou. “Essa minha primeira viagem foi para matar saudades daquele local, mas depois passei a ter saudades de viajar”, explica.
A Suíça tornou-se, nos anos seguintes, como ponto obrigatório de passagem, enquanto ia conhecendo outros países à volta. Depois começou a ponderar outros destinos. “A Suíça não podia ser a minha prisão”, frisa.
Começou a fazer viagens de 10 a 15 mil quilómetros, sempre no mês de Agosto e sempre que o dinheiro o permitia. Os medos iniciais deixaram de fazer sentido. “Quando fui à Roménia, há dois anos, toda a gente me falava em perigos. Fui e adorei”, argumenta.
Nos últimos anos, trocou de mota várias vezes, sem nunca deixar de ser fiel à Honda, pela fiabilidade e resistência. Teve uma Varadero e já vai na terceira PanEuropean 1300. E não, não julgue que Gracinda tem uma garagem cheia de motas. “A mota para mim é para andar. Somos uma equipa e ela não me pode deixar ficar mal. Não sou colecionadora”, refere. Às contas da vida em duas rodas desta professora juntam-se ainda as duas Vespas e cinco bicicletas.
Só nas seis motas de maior cilindrada que teve nos últimos anos percorreu cerca de 830 mil quilómetros… Viajou por 39 países (38 na Europa e passou por Marrocos).
Rússia era sonho antigo
“Vi beleza em tudo o que encontrei, mas o que mais me maravilhou foi o lado humano desta viagem”, admite a docente. “Na Rússia não são muito sorridentes, mas são prestáveis, acontece o mesmo com os alemães. Os romenos e os gregos são muito parecidos connosco. Os polacos também são calorosos”, dá como exemplo. Além das belas paisagens e monumentos que conheceu, do gosto pela viagem, ficou-lhe a simpatia e o calor humano com que é sempre recebida em toda a parte.
“As pessoas são muito prestáveis quando encontram uma mulher de mota sozinha”, refere. “Chegar a Belgrado (na Sérvia) e ver que tinham seguido o meu nome até ao blogue e tinham uma foto minha com a mota que mostravam a dizer que estavam à minha espera foi uma surpresa”, conta Gracinda. “Na Roménia, depois de algum tempo à procura do alojamento,
pedi ajuda a um grupo de jovens romenos e um fez questão de ir à minha frente a indicar-me o caminho. A dona da estalagem estava preocupadíssima porque eu não tinha chegado e já eram 22h30. Ela e o marido ainda me arranjaram comida e conversamos durante muito tempo, em várias línguas, como se fossemos amigos de longa data”, dá como exemplo. E histórias como estas sucederam-se em vários países. Relatos que vai deixando no seu blogue (http://passeandopelavida.com/) e página do Facebook. “Nestas viagens vê-se tanta coisa que, se não escrevo e tiro fotos, esqueço-me”, confessa.
“Não sou muito aventureira. O que me faz viajar é o que quero ver”
Para onde vai para o ano ainda não sabe. Nunca pensa no destino com muita antecedência e sonha à medida do dinheiro que tem. Mas sabe que vai, algures.
Aos fins-de-semana vai continuar a andar pelo país, nas férias lectivas da Páscoa arranja sempre tempo para uma viagem pela Península Ibérica e, em Agosto, a Europa.
“Não sou muito aventureira. O que me faz viajar é o que quero ver. Não tenho interesse em ir a sítios só para dizer que fui”, garante. “Tenho vontade de ir a países nórdicos como a Noruega ou a Islândia e também gostava de ir ao Azerbaijão ou à Turquia”, dá como exemplo. À Rússia também gostava de voltar.
“Depois de fazer uma viagem destas a escala em que vemos as coisas fica diferente. Quando se está a 200 quilómetros de casa é perto”, brinca.
Blogue vai dar origem a um livro
Há já cerca de 12 anos que Gracinda Ramos alimenta o blogue “Passeando pela Vida” com imagens e relatos das viagens que ia fazendo. “Para avivar a memória”, confessa. E também há muito tempo que muitos a incentivam a transformar parte desses relatos num livro.
“Até que recentemente um amigo me disse ‘escreve que eu publico’. E eu decidi-me a escrever”, adianta a professora da Escola Secundária de Paredes.
Por isso, partiu para esta viagem à Rússia ainda mais atenta. Recolheu, como é hábito, milhares de fotos e desenhou vários dos locais por onde passou.
Não pretende fazer um livro de crónicas. O objectivo é que cada capítulo conte uma história ou uma experiência pela qual passou.
Vida sobre rodas em números
830.000 quilómetros percorridos, nas seis motas de maior cilindrada
20.000 quilómetros feitos, nesta que foi a viagem mais comprida, até à Rússia
16.549 fotos recolhidas, só nesta última viagem
110 gigabytes de informação, entre fotografias e vídeos (desta ida à Rússia)
39 países já visitados
6 motas
5 bicicletas
2 Vespas