Uma em cada 17 pessoas vai ter disfagia ao longo da vida, ou seja, vai ter dificuldade no transporte da saliva, bebidas ou alimentos desde a boca até ao estômago.
Para melhorar a qualidade de vida das pessoas com disfagia e facilitar a preparação de refeições, assim como devolver aos doentes o prazer de comer e promover a inclusão social à mesa, foi lançado o ebook “Disfagia: receitadas adaptadas com cor e sabor”, esta segunda-feira, dia em que se assinalou o Dia Mundial da Deglutição. A meta também foi desmistificar o tema.
Mais do que mais do que um livro de receitas, este ebook assume-se como um instrumento de trabalho para os profissionais de saúde e um guia orientador para a pessoa com disfagia/prestador de cuidados. O projecto foi desenvolvido por profissionais do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa e contou com a colaboração dos alunos do Curso Técnico Profissional de Cozinha/Pastelaria da Escola Básica e Secundária de Paredes, entre outras entidades.
“Havia uma tendência, até por comodismo, de misturar todos os alimentos numa sopa”
Na sessão de apresentação, realizada no auditório do Museu Municipal de Penafiel, Margarida Almeida “despiu a bata de médica” e falou no papel de cuidadora da mãe, de 94 anos. São de Valongo.
“Quando se trata dos nossos não é tão fácil ter atitude profissional. Costumo chamar o meu filho”, admite. A mãe, Amélia, vive há cerca de 10 anos com dificuldades de deglutição e episódios de engasgamento. Chega a acontecer três a quatro vezes por semana. “Temos de ter cuidados redobrados, prega-nos sustos. Fica bastante aflita e começa a salivar. Dispo a bata de médica e sou só cuidadora e é difícil agir nestas situações, se calhar não tenho a frieza suficiente. Estes episódios de disfagia têm vindo a acentuar-se, possivelmente pelo próprio envelhecimento e por pequenos AVC’s”, explica.
“Em minha casa realmente eram só sopas, enriquecidas, e purés de fruta. Percebi que se calhar devia ter mudado muitas coisas quando desfolhei o livro”, refere Margarida Almeida. Às vezes a mãe ficava a vê-los a comer alguns tipos de alimentos e, outras vezes, evitavam comer alguns à frente dela. “Havia uma tendência, até por comodismo, de misturar todos os alimentos numa sopa. Agora percebi que é importante separar os sabores, fazer diferentes purés, e ela gostou. Comeu muito melhor. Parecem pequenos nadas, mas fazem toda a diferença. Ficam mais felizes”, assegura a médica e cuidadora.
Por isso, considera que estas ideias de receitas, que “possam quebrar esta monotonia são muito importantes”. “Este livro tem óptimas ideias e é muito apelativo em termos de cor. Mostra que podemos converter os alimentos de outra forma para serem mais apelativos. Os olhos também comem. Estar sempre a comer a mesma sopa com a mesma cor e a mesma fruta deve ser muito chato”, admitiu.
30 receitas com cor, sabor, aroma e textura
“Deglutimos mais de 600 vezes por dia”, esclareceu Rosa Leão, enfermeira especialista em Enfermagem de Reabilitação da Unidade AVC do CHTS. E quando há dificuldade em deglutir, disfagia, podem acontecer inúmeras complicações, “como pneumonia por aspiração, desnutrição, desidratação, mais custos em saúde, mais dias de internamento, isolamento, depressão, maior morbilidade e mortalidade”, elencou.
Segundo a profissional de saúde, este projecto começou por ser aplicado na unidade, onde a incidência da disfagia é elevada. 51% dos doentes apresentavam disfagia na alta, no caso dos doentes de AVC. Mas isso, disse, é só a ponta do iceberg, já que estas dificuldades não são exclusivas dos doentes de AVC, pode haver outras causas como infecção, doença do sistema neuromuscular ou até esclerose múltipla, entre outras.
Uma em cada 17 pessoas vai ter disfagia ao longo da vida, pelo que é “emergente actuar e preparar o futuro”, defendeu a enfermeira, indo além das sopas com carne e peixe.
Rosa Leão explicou que este ebook surge pela grande incidência da disfagia, pelas complicações que traz, baixa qualidade de vida dos doentes e também pela baixa literacia em saúde existente.
“Devido à elevada incidência e à gravidade das complicações que podem surgir, torna-se emergente empoderar as pessoas afectadas/prestadores de cuidados, de conhecimentos e habilidades que permitam gerir esta problemática, prevenindo complicações e aumentando a literacia neste âmbito”, argumentou. Por isso, são várias as áreas a serem abordadas para a gestão da disfagia, nomeadamente sinais e sintomas, possíveis complicações, posicionamento durante as refeições, preparação de alimentos/bebidas, actuação em caso de engasgamento.
O livro aponta para a preparação de dietas adaptadas de consistência cremosa, com ingredientes acessíveis, nutricionalmente equilibradas e diversificadas, propondo alternativas para as diferentes refeições, “quebrando a monotonia das dietas, contribuindo para o correcto aporte nutricional e hídrico”.
Ao todo são 30 receitas com cor, sabor, aroma e textura, desde pequenos-almoços, a sopas, pratos de peixe, pratos de carne e sobremesas.
Presente na sessão, o presidente da Secção Regional Norte da Ordem dos Enfermeiros, João Paulo Carvalho, defendeu que “tudo o que se possa fazer para melhorar a qualidade de vida destes doentes é importante”. “Isto sim é colocar o doente no centro do sistema”, afirmou sobre este projecto. Daniela Oliveira, vereadora da Saúde da Câmara de Penafiel, considerou este ebook um “agente promotor da inclusão social à mesa”, enquanto o enfermeiro director do CHTS, José Ribeiro, realçou o trabalho de equipa por detrás do projecto. Destacou ainda a importância da iniciativa “numa das regiões com maior incidência de AVC”. Foram 339 os doentes referenciados em 2021 para a via verde do AVC do Hospital Padre Américo, lembrou. Este livro “é um farol para ajudar a alimentação de pessoas com disfagia. Vai empoderar e informar doentes e familiares para uma alimentação mais adequada”, acredita.