Percorriam a pé dezenas de quilómetros por dia, muitas vezes descalças. Na cabeça e nos ombros levavam peças de mobiliário, sobretudo cadeiras, mas também mesinhas ou floreiras e até armários (às peças).
Eram estas meninas e mulheres que levavam muito do mobiliário de Lordelo, Paredes, para o Porto, Santo Tirso, Marco de Canaveses, entre outros. Chamavam-lhe carreteiras.
O trabalho era duro. Pelo caminho, sob o peso do carrego, chorava-se, mas também havia risos e cantorias, contam três Marias que viveram a profissão e uma vida sofrida, marcada, muitas vezes, pela fome e pelas dificuldades.
A partir dos testemunhos e das histórias destas mulheres, a Associação Astro Fingido desenvolveu o espectáculo “Mulheres Móveis”, que sobe este domingo ao palco da Casa da Cultura de Paredes.
Mulheres deram o seu testemunho
Saíam de madrugada com móveis amarrados e empilhados à cabeça. O peso era muito. E a tendência era para começarem ainda crianças. Algumas sem nunca terem mesmo passado pela escola.
Em Lordelo, e ao lado, em Rebordosa, freguesias marcadas pela indústria do mobiliário, era frequente ver as carreteiras a passar.
Maria Santos (77 anos), Maria Lamas (81) e Maria Alice Rocha (86) eram três dessas carreteiras. Nascidas e criadas em Lordelo, conhecem-se desde crianças e, hoje, partilham os dias no Centro Sócio-Educativo de Parteira.
Todas trabalharam desde tenra idade, nos campos e nas lides da casa. E foi também cedo que aprenderam a pôr a estribeira na cabeça para levar carregos de móveis para onde fosse preciso. Maria Lamas e Maria Alice nem sequer foram à escola. Maria Santos ainda fez a terceira classe, conta com orgulho, e pegou em carregos a partir dos sete anos.
Eram tempos de fome e todos os elementos da família tinham que dar o seu contributo. O transporte de móveis ajudava a ganhar alguns tostões.
Foram carreteiras durante vários anos, mesmo depois de casar e mesmo grávidas. Maria Lamas conta a história de como um dos seus filhos nasceu no dia seguinte a levar um carrego.
Desse tempo guardam muitas histórias, nem todas boas. Maria Santos ainda se lembra de como, quando passavam numa zona de Rebordosa, algumas “colegas” lhe atiravam pedras e chamavam nomes. “Costumávamos cantar quando estávamos a descer para Valongo para saberem que já estávamos a chegar”, recorda Maria Lamas. E Maria Alice ainda não esqueceu o medo que era passar no alto de Sobrido, onde homens desempregados das empresas da lousa faziam assaltos. “Aí esperávamos umas pelas outras, para irmos todas juntas”, lembra.
As três Marias gostaram de ser ver retratadas nesta peça, para a qual deram o seu testemunho. “Foi engraçado ouvir o que foi dito nesta peça. Estava bem feito”, dizem.
No total, entre as três, têm 25 filhos. E acreditam que só agora alguns deles, e também os netos, perceberam algumas das dificuldades pelas quais passaram.
Ainda assim, não escondem as saudades desses tempos idos.
“Estas mulheres faziam um trabalho que alguns consideram inimaginável”
O espectáculo Mulheres Móveis, da Astro Fingido, quis recuperar estas histórias e homenagear a figura da carreteira.
Filho de pais lordelenses, Fernando Moreira, director artístico da companhia e também encenador, já conhecia esta realidade, do tempo em que ainda via carreteiras passarem em frente do café da avó. Mas confessa que, nessa altura da juventude, não deu valor a essa realidade.
Agora, numa tentativa de recuperar o património da região, achou importante fazer um tributo a estas mulheres e ao seu papel na indústria do móvel, a partir dos testemunhos das antigas carreteiras e do imaginário do poeta italiano Tonino Guerra. “Há um lado muito humano nestas histórias”, realça.
“Quando concebemos esta história achamos que só interessaria às pessoas do Vale do Sousa e de Paredes, mas cheguei à conclusão que não depois de três espectáculos com lotação esgotada no Porto”, diz Fernando Moreira.
O espectáculo, que põe em palco quatro carreteiras, interpretadas por Ângela Marques, Filomena Gigante, Luísa Calado e Patrícia Queirós, é sobretudo emocional, sem ser triste, garante o encenador. “É um espectáculo bonito que dá para chorar e para rir, que respeita as mulheres, a questão social e humana”, conta. É sobretudo uma história com autenticidade e verdade.
“Estas mulheres faziam um trabalho que alguns consideram inimaginável”, lembra Fernando Moreira.
A peça sobre este domingo, pelas 16h00, ao palco da Casa da Cultura, em Paredes. O director artístico da Astro Fingido espera que a consigam pôr esta produção profissional em cena noutros palcos da região.