No final de Março passado, convidaram Maria Rueff para um serão, para falar, diante de uma plateia concorrida, do que mais lhe importa na vida. A conversa foi gravada no endereço. Aproveito os apontamentos de Maria Zarco:
«Percebe-se o diálogo regular de Maria Rueff com Deus, o seu “amigo de almofada”. Entram juntos em palco e atravessam juntos o dia-a-dia da actriz. Até o humor, que lhe corre nas veias, foi depurado pela fé, a partir de um livro que intitulou de “O Sorriso de Deus”, apenas lembrando bem que o autor era jesuíta. É possível que o título seja antes “Deus Ri: Alegria, Humor e Riso na Vida Espiritual”, de James Martin, SJ. Qualquer que seja o canhenho, aprendeu naquelas páginas a esquivar-se da piada trocista, maldosa, que fere e humilha o caricaturado, para descobrir o lado vitamínico e catártico da comédia, capaz de iluminar um pouco uma existência pejada de claros-escuros. Passou a destrinçar os dois territórios do cómico pela fronteira que as preposições demarcam: “rir com”, nunca “rir de”. E concluiu: “Sinto-me ao serviço do outro e foi assim que resolvi [a questão] no meu coração. Encaro o humor como espelho do outro e não como uma farpa”».
«Lembra-se de um conselho maternal que mais ninguém da sua geração terá recebido, tal a originalidade da senhora: quando faltavam a Rueff umas décimas para entrar em medicina, disse à filha – “Ainda bem, porque a tua vocação é o teatro. Vai antes p’ró Conservatório”. Identifica a marca de Deus na família pela facilidade em falarem uns com os outros: “Em casa, sempre mantivemos o hábito de conversar. (…) Deus está muito, muito presente, é como se estivesse ao meu lado. É uma relação absolutamente íntima, próxima”». Maria Zarco anota que cita de memória e continua: «A conversa flui com ritmo, percebendo-se que Rueff reflecte a sério sobre a vida e a sua condição. A “arte do ridículo” fê-la crescer, distanciando-a de uma dor relativizada, para transfigurar a percepção da vida através da “pirueta” saudável e discernida que o humor opera».
«Adoptou um lema do Papa Francisco “levai a vida com humor”, entendendo-o como aceitação do outro, exactamente como ele é. Exemplificou-o com (…) um contratempo de infância, quando chegou a Lisboa, depois da família perder tudo em África. A catequista queria excluí-la de uma procissão por não ter sapatos pretos! À data, a criatividade da mãe solucionou-lhe o problema: [pintou de preto os únicos sapatos que tinha e a filha pôde participar]. Rueff vê Francisco como alguém que saberia sempre acolher aquela pequenina com os sapatos da cor que fossem».
«O santo da sua devoção, que lhe serve de bússola no trabalho, é o pouco conhecido S. Filipe de Nery (1515-1595) – um italiano jocoso, que não se coibiu de brincar com o Papa e com Santo Inácio de Loyola. Maria chegou a ir à igreja dedicada a Nery, em Roma, onde lhe pediu ajuda para se manter nesse trilho exigente e sub-reptício da comédia bondosa».
«O que Deus lhe pede? “Acho que Ele nos pede escuta”».
«O que lhe falta fazer? “Deus sabe! Agradeço tanto a Deus. Não fiz nada, só recebi, embora trabalhe muito”».
«Está preparada para um dia partir? “Faço muito o exame de consciência, dos jesuítas, e o exercício do perdão. Já pedi perdão a figuras com quem brinquei e poderei ter magoado… Também agradeci a quem devia. Estou preparada para Deus me dizer ‘vá, está na hora’ ”».
«Correm em acelerado aqueles 50 minutos de “flashes” sobre uma vida com garra, graça e atenção aos outros. O olhar lúcido e meigo dá uma imensa frescura ao seu humor, que entra naquele registo raro, imune ao cinismo que cede à piada fácil, amargo-corrosiva. Em Rueff, a vontade de viver aproxima-a de quem a rodeia, para “amar o outro como ele é. É isso que o humorista faz, de alguma forma”».
Não preciso de assinar este artigo, basta agradecer à Maria Zarco as frases que copiei do seu bloco de notas.