“Fintaram” a COVID-19. E é com um sorriso no rosto que o assumem, da mesma forma que tentaram enfrentar os dias em que a doença os afectou, com esperança e de forma positiva. Dão a cara sem receios nem preconceitos. Não escondem que pensaram em morte e que a culpa os assolou. Mas sobretudo deixam alertas: “Não brinquem com a vossa saúde e com a dos outros. Todo o cuidado é pouco e é preciso responsabilidade. Aqui correu tudo bem, mas há casos em que não corre”.
Ao todo foram cinco os elementos desta família de Fonte Arcada, Penafiel, afectados pelo “bicho”. Quatro irmãos, entre os 55 e os 68 anos, e uma sobrinha/filha de 29 anos. Duas das irmãs estiveram ventiladas na unidade de cuidados intensivos do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa (CHTS) e um outro esteve internado na mesma unidade hospitalar. Uma delas só regressou a casa ao fim de 80 dias de tratamento.
Cá fora, a dar-lhes apoio, um elo para o mundo, tinham uma outra sobrinha, Fátima Soares. Foi a ela que, diariamente, os médicos deram boas e más notícias.
E é a eles, aos médicos e a todos os profissionais de saúde que cuidaram dos seus e de todos que agradecem: “foram incansáveis e, se não fossem eles, elas não estavam cá hoje”.
O “bicho” que chega sem aviso
O “bicho”, como chamam ao vírus que está a afectar o mundo, entrou-lhes pela porta dentro ainda em Março. Se nem todos sabem como, ali há certezas. Foi Inês Sousa quem o trouxe. A jovem, de 29 anos, que partilha casa com três das tias, é enfermeira no Centro Hospitalar de São João, no Porto. Estava na linha da frente, para o bem e para o mal.
“Na zona em que trabalho não íamos receber doentes COVID-19. Mas eu estive com uma doente que estava positiva sem saber. Só ao terceiro teste dela é que se confirmou”, conta Inês. Apesar de todo o equipamento de protecção individual e cuidados ela terá sido o primeiro elemento da família a ficar infectado.
As tias, com as quais foi criada e são praticamente mães, tinham alguns sintomas já antes de ela própria saber que estava positiva. “Começaram a ter febre, mas pensamos que era uma constipação. Nunca nos passou pela cabeça que fosse COVID”, explica. Quando soube que tinha tratado de uma doente infectada foi fazer o teste (a 29 de Março), “por descargo de consciência” já que não tinha sintomas, e no dia a seguir foram as tias. Perceberam logo que o mais certo era estarem todas infectadas. O pai, Manuel Sousa, de 61 anos, e a afilhada, com quem Inês tinha estado ficaram logo de quarentena.
Seguiu-se uma catadupa de internamentos. Maria de Fátima Sousa, de 68 anos, a tia mais velha, acabou por nem precisar de teste, já que o quadro era claro. Já tinha feito medicação para baixar a febre e antigripais, mas nada funcionava. “Estava mais cansada e com falta de ar e quando liguei para o 112 os lábios começavam a ficar roxos e a saturação estava muito baixa”, relata a enfermeira. “Ela só me dizia que não queria ir para o hospital”, lembra a jovem. Ficou logo internada e, no dia a seguir, foi para os cuidados intensivos onde esteve ventilada 22 dias. Pouco depois seria a vez da irmã Júlia Sousa, de 55 anos, depois de desmaiar e com quadro clínico idêntico, de ser também colocada em ventilação assistida nos cuidados intensivos do Hospital Padre Américo. Ficou sete dias nessa situação. “Estavam lá as duas sem saberem uma da outra”, relatam os familiares.
Um dia mais tarde foi Manuel Sousa que ficou internado, também no CHTS. “Tinha falta de ar e febre e também não queria ir”, refere a filha. Os três tinham problemas de saúde. Eram doentes de risco. “Estive três dias sem saber nada da família. Só depois é que me levaram o telemóvel”, refere o penafidelense.
“Dizia muitas vezes: vão morrer as duas e não as vemos mais”
Inês e a tia Aurora Sousa, de 66 anos, com sintomas menos graves, ficaram a recuperar em casa. Mas a tarefa não foi mais fácil. A angústia e o medo eram grandes, pelas duas e pelos que estavam no hospital. “Dizia muitas vezes: vão morrer as duas e não as vemos mais”, lamenta Aurora. “Ainda bem que não se chegou ao ponto de desligar ventiladores”, comenta Inês, conhecedora da realidade hospitalar e das decisões difíceis que teriam de ser tomadas.
Todos os dias a ansiedade repetia-se na hora de o telefone tocar para receberem notícias. O telemóvel passou a ser a única forma de contacto com o mundo para Inês e Aurora, entre muitas chamadas e videochamadas. Tinham-se só às duas e por muito tempo dormiram juntas. “Estivemos aqui fechadas dois meses, praticamente sem vir cá fora. Só saíamos para fazer os testes. Não queríamos contaminar ninguém. Logo no início ligamos à família toda para não virem cá”, explicam tia e sobrinha. As rotinas passavam ainda por desinfecções frequentes de todos os espaços usados.
Aurora Sousa nunca teve febre, pelo contrário, tinha frio. Inês Sousa tinha dores musculares e ficou sem cheiro e paladar. A isso juntou-se uma candidíase oral que não sabe se esteve relacionada com a COVID-19.
“Preparei-me psicologicamente para o pior. Nunca pensei que íamos estar todos aqui hoje”
Durante todo este período em que os dias custavam a passar, Maria de Fátima Soares, de 43 anos, sobrinha/prima dos infectados, era a ligação ao mundo real. “Se precisassem de medicamentos ou de coisas era eu que ia comprar e fui eu que fiquei incumbida de falar com os médicos”, recorda a natural de Fonte Arcada.
Todos os dias havia um ponto de situação sobre as duas tias em cuidados intensivos. “’Estão muito mal’, ‘é muito grave’, estão em estado crítico’… Era isto que eu ouvia todos os dias. Era uma angústia muito grande. Preparei-me psicologicamente para o pior. Nunca pensei que íamos estar todos aqui hoje”, salienta. Outros dias era “hoje não piorou, está estável, agarre-se ao estável”.
“Numa das vezes que me ligaram, a 20 de Abril, disseram que a minha madrinha, a Maria de Fátima, não estava a reagir bem ao ventilador. Só havia duas soluções, ou uma traqueostomia ou desligar o ventilador e arriscar. Ninguém quer ouvir isto”, relata. No dia a seguir fizeram a traqueostomia e resultou. A tia Júlia também teve uma boa evolução ao fim de alguns dias em perigo. “Quando o médico me ligou a dizer ‘a D. Júlia já não está entre nós’ foi um susto. Tinham desligado o ventilador e já estava na enfermaria”, conta com um sorriso.
Quando Maria de Fátima (tia) saiu dos cuidados intensivos também foi com ela que falou, antes de seguir para Paredes onde fez a restante recuperação. “Eu até estava receosa, mas ela conheceu logo a minha voz e disse-me que estava bem e que não tinha dores”, afirma a sobrinha.
“Senti-me muito culpada. Se não tivesse corrido bem era um peso que ia carregar a minha vida toda”
Inês Sousa fez oito testes. Só a 15 de Maio, um mês e meio mais tarde, o resultado veio negativo. E só na semana passada regressou ao trabalho.
“Nem parece que passaram três meses. Voltei com mais receio. Ainda não se sabe bem se posso voltar a trazer o bicho para casa. Ainda não há certezas sobre a questão da imunidade”, assume. Por outro lado, há o sentimento de culpa. “Senti-me muito culpada. Por mais que me digam que não tive culpa de nada não há nada que me tire este peso de cima. Se não tivesse corrido bem era um peso que ia carregar a minha vida toda. A nível psicológico é uma doença muito dura”, sustenta a enfermeira.
“Isto espalha-se muito facilmente. Com o meu pai não tinha estado nem cinco minutos. Por isso fico revoltada quando vejo ajuntamentos. As pessoas não entendem que isto é grave”, critica.
Inês tem agora novos rituais. Sempre que chega desinfecta-se à porta. A roupa vai directa para a máquina e ela para o banho. Leva máscaras, desinfectante e luvas para todo o lado. “E ando sempre a olhar para o lado a ver se alguém está muito próximo. Temos medo. E é melhor prevenir que remediar”, alega.
Júlia e Maria de Fátima tiveram de reaprender a andar e fazer fisioterapia. A primeira demorou 60 dias a voltar a casa, a segunda 80. Desde o dia 24 de Junho que estão todos juntos, sem COVID. Evitam ainda assim sair, só quando é mesmo necessário.
Ainda temem pelas possíveis sequelas. Para já têm queda de cabelo.
“As pessoas não ligam, mas isto é muito perigoso. Eu não desejo isto a ninguém. É um sofrimento muito grande. Eles sofreram de uma maneira e nós de outra”, diz Aurora.
“É nestas alturas que uma pessoa sente falta de um abraço e de um toque”, garante Inês.
O agradecimento sentido aos profissionais de saúde
“Quero aqui expressar publicamente o meu profundo agradecimento a todos os profissionais de saúde que cuidaram e não desistiram delas! Não lhes conheço o rosto, mas a voz de cada um dos médicos da equipa dos Cuidados Intensivos do Hospital de Penafiel está gravada para sempre. Obrigada Dra. Fátima Santos, Dr. Marco Ribeiro e Dr. Jorge, que diariamente falavam comigo! Obrigada de coração!”. O agradecimento foi publicado nas redes sociais por Maria de Fátima Soares.
“Quando o bem é feito também deve ser reconhecido e exposto”, acredita.
“Toda a equipa foi impecável e só temos a agradecer. Foram incansáveis e, se não fossem eles, elas não estavam cá hoje. Todos os dias lhes agradecia por estarem a por a vida em risco”, acrescenta a penafidelense.
O agradecimento estende-se aos Bombeiros Voluntários de Paço de Sousa e ao Hospital da Misericórdia de Paredes. “Não esqueço que por trás de cada um deles também está uma família, certamente em sobressalto a cada hora, a cada dia. Estou grata por tudo. Creio que expresso o sentimento de quem partilhou da mesma dor, do desespero, da angústia e da incerteza do amanhã…. Outros sentiram pior: a dor da partida, a ausência de uma despedida ou de um beijo…. Ficaram apenas o silêncio e o vazio… Para eles, um abraço (que tanta falta faz!)”, afirma ainda, pedindo a todos responsabilidade, já que estes “heróis” são de carne e osso.