Durante cerca de sete anos a Dalmática, empresa especializada em conservação e restauro do património sediada em Lustosa, Lousada, persistiu e não desistiu da ideia de se internacionalizar na América Latina. Conseguiu ser a escolhida para intervencionar, no ano passado, o retábulo-mor da Basílica de Santa María La Antigua, a Catedral do Panamá, que é monumento classificado como Património Mundial da Unesco.
O trabalho, que era para demorar cinco meses, passou a 10, quando, pelo reconhecimento da qualidade da intervenção, a empresa foi convidada a executar outros restauros, em duas pinturas sobre tela, duas pias de água benta, um retábulo lateral e um monumento funerário. Os técnicos acabaram por descobrir também uma pintura mural de 21 metros de altura e cerca de nove de largura que ninguém conhecia.
A cereja no topo do bolo chega agora. Este sábado, o Papa Francisco inaugura, durante as Jornadas Mundiais da Juventude, o altar em que os lousadenses trabalharam, numa cerimónia que deve contar ainda com o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.
“Se calhar estamos perante um episódio irrepetível na história da Dalmática. Somos uma mera empresa de conservação e restauro e muito nos engrandece quando os nossos trabalhos são inaugurados pelo bispo da diocese. Realmente termos o Papa Francisco a inaugurar os nossos trabalhos é algo sem medida, não dá para quantificar. Acho que no sábado os corações de todos nós vão encher-se com as imagens que vão correr mundo. O Santo Padre estará no cenário que nós restauramos. E isso enche-nos de orgulho”, assume Marlene Maia, responsável pela comunicação da empresa.
Dalmática escolhida pela valia técnica da proposta e pela força dos profissionais
Quem percorre a rua onde está sediada a Dalmática, em Lustosa, está longe de imaginar que está prestes a dar de caras com as instalações de uma empresa cujo trabalho, por estes dias, vai estar sob os olhares de todos.
A Dalmática nasceu em 2007 pela mão de Rui Barbosa. Trabalha com conservação e restauro sobretudo de arte sacra, com 95% do seu trabalho a estar focado na Diocese do Porto.
Mas desde 2011, perante um desafio da Câmara Municipal de Lousada, a empresa lançou-se em busca de outros voos no mercado internacional, conta o director-geral.
“A primeira vez que surgiu a hipótese do Panamá foi a convite da Câmara de Lousada e a partir do momento em que nos mostramos interessados eles construíram as pontes com a Associação Empresarial de Portugal e com o Panamá, para se fazer um estudo de mercado a ver se valia a pena uma missão empresarial. A Câmara de Lousada abriu a porta e agora está a ajudar-nos a construir pontes para outros países na América Latina, como a Colômbia”, explica.
Nada caiu, no entanto, do céu. “Fomos especificamente procurar arte sacra com necessidade de intervenção. Se havia, se não havia, se havia concorrência que nos pudesse fazer face ou não e se aquele governo e território estavam interessados em salvar aquele património. Era preciso a conjugação destes três factores. Isto exigiu investimento forte e algumas visitas àquele território”, lembra Marlene Maia.
Património para intervir havia, e muito, sobretudo numa zona colonial classificada como Património Mundial da Unesco, em que se incluía a catedral. Mas a internacionalização ainda estaria longe. “Passados três anos a catedral encerrou por falta de condições para que fiéis e turistas lá entrassem”, refere a responsável pela comunicação da Dalmática, lembrando o mau estado de conservação daquele património.
Entretanto o Governo do país mudou e o novo era mais sensível às questões culturais e o país foi escolhido para acolher as Jornadas Mundiais da Juventude, que previa a recuperação de toda aquela zona.
Acabaram escolhidos para a recuperação do retábulo-mor da catedral, “pela valia técnica da proposta de conservação entregue e pelo currículo da empresa e da força dos nossos profissionais”, garante Marlene Maia.
Equipa teve que duplicar e ficar mais tempo
As primeiras equipas de intervenção da Dalmática arrancaram para o Panamá em Janeiro de 2018. A previsão era ficarem cinco meses para a fazer uma intervenção total do retábulo-mor com 21 metros de altura e nove de largura “com muitos problemas”.
Para o local foram profissionais das equipas de estruturas, que se dedica ao tratamento das madeiras, e de revestimento, que trata das pinturas e talhas douradas, entre outros.
“Cada quase milímetro de madeira do retábulo teve que ficar acessível com a colocação de andaimes à frente e atrás”, descreve Marlene Maia.
“Acabaram por nos ser entregues a conservação e restauro do único retábulo lateral que aquela catedral tinha, em mármore, a conservação de um monumento funerário também em mármore, duas pinturas sobre tela de grandes dimensões e duas pias de água benta em pedra”, recorda a responsável de comunicação.
Isso implicou duplicação de esforços. “Cresceu em dobro o tempo de permanência e também cresceu em dobro a equipa da Dalmática”, até porque tiveram que ir profissionais de outras áreas. No total, foram cerca de 20 os elementos envolvidos em todo o processo de restauro, a maioria no Panamá. Técnicos ligados à madeira, tela, pedra e pintura mural, gente da área da comunicação e vídeo que documentou todo o processo e especialistas na recolha de fotografias técnicas e de pintura mural. “Queríamos deixar uma marca de garantia e qualidade”, sustenta a empresária.
É que o “brilharete final” aconteceu quando as equipas detectaram, na parede atrás do retábulo-mor, cheia de lixo e raízes, uma pintura mural a quase toda a dimensão da parede. “Fizemos um trabalho forte para convencermos as autoridades locais para a conservação daquele património e acabou por nos ser adjudicado também esse trabalho”, descreve Marlene Maia.
O trabalho realizado deixou-lhes “um mercado de portas abertas”. “Há ali várias igrejas para restaurar e as autoridades já nos pediram propostas de intervenção e depois da catedral já aconteceu outra coisa extraordinária que foi não sermos nós a procurar, mas outros países a contactarem a Dalmática e a solicitarem orçamentos para algumas obras”, dá como exemplo.
“Não era fácil subir 20 metros várias vezes ao dia. E o calor também causou dificuldade”
Alguns dos técnicos de conservação e restauro ficaram só alguns meses. Outros estiveram no Panamá quase desde o início ao fim da intervenção.
Primeiro entrou em acção a equipa de estruturas, onde se integra António Sousa, que esteve fora quatro meses. “Fizemos a substituição de madeiras velhas por novas, o preenchimento de lacunas, porque os bocados podres eram bastantes, e tratamento com produtos para madeiras para consolidar e desinfestar. Parte da estrutura estava num estado muito mau”, relata.
As principais dificuldades da intervenção foram mesmo a altura do retábulo. “Não era fácil subir 20 metros várias vezes ao dia. E o calor também causou dificuldade. Pegava-se numa t-shirt de manha e de tarde tínhamos que pegar noutra porque ficava húmida”, acrescenta.
Ainda que longe de casa e com saudades e perante uma cultura diferente descreve uma experiência boa e enriquecedora. “ Voltava, mas talvez não tanto tempo seguido”, diz.
Segundo a técnica de conservação e restauro, pelas mãos da sua equipa, de revestimentos, passou quase tudo o que é visível, desde a pintura a douramento. “O retábulo estava muito deteriorado. Tivemos que fazer uma limpeza geral e fixar tudo o que era pintura original e levantar muitos dos repintes que tinham porque o normal ao longo dos anos é ir pintando por cima e o altar tinha sido muito alterado”, explica.
“A parte mais complicada foi o levantamento do repinte das colunas principais, ao lado do sacrário, deu-nos dores de cabeça. Tinha várias camadas de pintura sobre a pintura original e estavam muito deterioradas. Foram muitas horas com tudo removido a bisturi. Mas isso fez toda a diferença no resultado final da obra, foi um esforço grande que valeu a pena”, garante Sofia Lobo.
Já ter um altar em que trabalhou consagrado pelo Papa é um sentimento diferente, assume. “Se calhar é a primeira e a única vez que isto vai acontecer. E sendo o Papa Francisco é uma sensação muito especial”, afirma.
Autarca orgulhoso elogia vontade de arriscar
Esta semana, Rui Barbosa entregou a Pedro Machado, presidente da Câmara de Lousada, uma medalha desenvolvida para assinalar a passagem da empresa pelo Panamá como reconhecimento. Foi concebida pelo mestre Avelino Leite, o artista plástico convidado há um ano para desenvolver as medalhas do centenário de Fátima. De um lado tem gravado a figura de um anjo presente no mural que descobriram no Panamá, do outro a imagem da catedral que vai ser inaugurada pelo Papa.
“Era evidente que se tratava de uma empresa recente, mas com muita juventude e muita formação numa área especial e com uma potencialidade enorme no nosso país e em termos internacionais”, sustentou o autarca.
O presidente da Câmara recordou ainda que a autarquia lançou a ideia de arriscarem uma missão empresarial. “O Rui Barbosa tem uma paixão enorme por esta área, mas também muito arrojo e resolveu arriscar, em boa hora o fez”, assume.
“Esta obra que fizeram no Panamá veio-lhes dar um justo reconhecimento. E esta coincidência feliz de o altar ser consagrado pelo Papa dá-lhes uma visibilidade fantástica. Enquanto autarca só posso sentir-me orgulhoso e espero que o exemplo desta empresa sirva para as empresas de Lousada e de todo o país”, defendeu Pedro Machado.
Durante os trabalhos, o monumento foi visitado pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal e pelo próprio Presidente da República do Panamá. Este sábado o Papa inaugura a obra e é esperada a presença de Marcelo Rebelo de Sousa.